segunda-feira, 24 de agosto de 2009

“Os Cus de Judas”: a impotência diante de barbaridades inevitáveis

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


O escritor António Lobo Antunes nasceu em 1942, em Lisboa, na região de Benfica, onde cresceu. Formado em Medicina e especialista em psiquiatria, foi convocado para o exército português e serviu na guerra colonial em Angola. Em 1979 um fato marcaria sua trajetória profissional ao publicar seus dois primeiros romances, “Memória de Elefante” e “Os Cus de Judas”. Sucesso de crítica e público, Antunes abandona a Medicina e dedica-se integralmente à carreira de escritor.

“Os Cus de Judas” tem como tema principal a guerra da independência de Angola e os impactos desse conflito tanto do ponto de vista do colonizado como do colonizador. O autor prioriza a análise psicológica, revelando as seqüelas traumáticas originadas pela experiência que o narrador teve no campo de batalha, em que tudo era motivo de horror e de indignação, culminando com a incapacidade de adaptação para uma vida normal.

O livro é dividido em 23 capítulos, cada um nomeado com uma letra do alfabeto. O narrador se identifica como médico, fala com uma garota que ele acabou de conhecer num bar de Lisboa. O assunto principal são as memórias dele. O leitor, então, é transportado para o passado no qual o protagonista relembra o tempo em que exerceu a medicina, servindo no exército, durante 27 meses, nas linhas de combate em Angola, entre 1960 e 1970.

O período é também conturbado na terra natal do narrador, Portugal, ainda sob a ditadura de Salazar, nação que resistia ao processo de descolonização da África, ocorrido a partir da II Guerra Mundial.

Enquanto bebe, o narrador-personagem revela suas experiências. Não raramente, confunde o leitor, pela narração ininterrupta, fragmentada, muitas vezes desprovida de pontuação, o que caracteriza o fluxo de consciência. A opção do autor por esse estilo é consciente e, habilmente, construída, pois retrata de forma verossímil o estado em que o protagonista se encontra: ébrio, amargurado, desiludido.

O relato feito sobre a guerra é marcado pela crise psicológica, que se manifesta por meio de indagações filosóficas, pelo pessimismo, pelas observações irônicas, pela indignação e revolta, que vão acentuando conforme a noite avança e o narrador vai se embriagando ainda mais.

As lembranças desse médico são freqüentemente interrompidas por digressões, muitas vezes revelando o conflito existencial. A infância é retratada com um misto de tristeza e nostalgia. Em tom semelhante, o narrador descreve a casa dos pais com características tradicionais, com antepassados militares, aprendendo a valorizar as instituições como o Estado, a igreja e a família.

O discurso ideológico oco e hipócrita é assimilado em toda a sua infância, sobretudo através de suas tias idosas, que não cessam de censurá-lo: “estás magro (...) Felizmente que a tropa há-de torná-lo um homem”.

Chega o alistamento, e com ele, as visitas dominicais da família e a perda de identidade. Pouco depois, o temido momento do embarque para Angola, para o Cus de Judas. Momentos antes da viagem, o narrador-personagem chora no banheiro. A infância novamente evocada para suprir a ausência de amigos.

Na capital, Luanda, a miséria extrema, fruto da colonização portuguesa, desperta a revolta do narrador. Incapaz de se recuperar do trauma causado pelos horrores que presenciou, acaba sofrendo de incurável niilismo.

As reminiscências da guerra são pesarosas. A guerra associada a doenças e a excrementos, era contrastada pelas confidências sexuais do tenente com a criada, assim como as próprias escapadas com garotas sujas que viviam em barracos da região.

Além da presença de um inimigo feroz, o Movimento pela Libertação de Angola (MPLA), o narrador também se lembra da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (Pide), formada por agentes de repressão do Estado Novo de Salazar, que, de forma cruel, obrigavam os prisioneiros a cavar a própria cova para depois os executar.

A ilusão de ser escritor é substituída pela rotina de sobrevoar os campos de batalha em busca de feridos para tratar, acompanhado por um enfermeiro desbocado que tinha aversão a sangue. Confessa à sua acompanhante que é incapaz de protestar sua revolta, pois é um fraco, inclusive não tendo participado de uma rebelião em sua tropa, ao contrário de um superior que impediu até mesmo o estupro de uma camponesa angolana por um soldado.

O primeiro romance sobre o conflito e a independência angolana é uma referência histórica quase obrigatória. A tragédia colonial é retratada do ponto de vista da impotência do ser humano diante da violência e do desrespeito aos valores sociais e morais que abalam o sentido da vida, apresentando contradições e sentimentos, emoções e angústia que revelam toda a fragilidade da alma diante de um quadro inóspito: “(...) eu perguntava ao capitão o que fizeram ao meu povo, o que fizeram de nós aqui sentados à espera nesta paisagem sem mar (...) numa terra que não nos pertence, a morrer de paludismo e balas (...) de emboscadas e de minas, lutando contra um inimigo invisível, contra os dias que não se sucedem e indefinidamente se alongam, contra a saudade, a indignação e o remorso (...)”.

Composições de Lygia Fagundes Telles

Geórgia Pereira, Acadêmica de Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina - UEL.


Maestrina ao abordar os sentimentos humanos, Lygia Fagundes Telles revela o interior de seus personagens como uma música: compõe as melodias doces no andamento adágio, quando quer ser lenta e minuciosa nos seus detalhes descritivos; allegro quando quer revelar sensações de felicidade e êxtase interior de suas figuras; ou andante, bem compassado, que inebria e prende o leitor até o final de suas narrativas. “Apertou os maxilares nua contração dolorosa. Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu – conhecia tudo tão bem, mas tão bem! Quase sentia nas narinas o perfume dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmido da madrugada, ah, essa madrugada”! Este é um trecho do conto “A caçada”, no qual a escritora suscita a expectativa do leitor até o final do texto, tecendo as inquietações da mente do personagem e conquistando quem lê.

Com o dom de grandes composições literárias e regendo a palavra com tamanha sabedoria, Lygia só poderia ser destaque no mundo das letras. A construção de sua carreira começou em 1938 com a publicação de seu primeiro livro de contos, “Porão e Sobrado”. Tal obra foi incentivada pelo pai, influente advogado do interior paulista. Nascida em São Paulo em 19 de abril de 1923, Lygia Fagundes Telles é filha de Durval de Azevedo Fagundes e Maria do Rosário Silva Jardim de Moura. Graduada em Educação Física e Direto, Lygia teve o primeiro contato íntimo com a literatura durante a faculdade, no início dos anos 40. Nessa época ela conheceu ícones como Mário e Oswald de Andrade, além de se aproximar de uma pessoa que se tornaria sua grande amiga, a poetisa Hilda Hilst. Ainda durante esta década, escreve dois livros de contos: “Praia Viva” e “O cacto Vermelho”.

Anos mais tarde, já pelos idos de 50, Lygia assinala sua transição para uma produção literária mais rica e madura, escrevendo o romance “Ciranda de Pedra” publicada em 1954, que inspirou a primeira versão da novela em 1981, e a atual que recebe o mesmo nome. Durante a década de 60, a escritora publica mais um de seus romances, “Verão no Aquário”, e é nomeada procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo.

A famosa obra “Antes do Baile Verde” é a reunião de contos escritos entre os anos de 1949 e 1969, mas publicados somente em 1970. A diferença temporal entre eles, esclarece o crescimento da autora e do seu texto ao longo desses 20 anos. O conto, que dá título à obra, ganhou o Prêmio Internacional Feminino para Estrangeiros e revela a postura de Talisa, uma jovem que vai à um baile de carnaval, e deixa o pai em casa a beira da morte. A escritora escancara neste conto a mediocridade do ser humano, que não se compadece com a dor e só pensa em satisfazer os seus prazeres.

Em 1977 Lygia publica outra referência para seu cabedal literário, a coletânea de contos “Seminário dos Ratos”. A obra carrega traços inconfundíveis da literatura fantástica, como o conto “As Formigas” que fala da história inusitada de um esqueleto emoldurado por formigas num quarto de pensão. O conto-título da obra também comprova a composição harmônica da autora para revelar o mundo camuflado da podridão política e burocrática.

Em 1985, Lygia Fagundes Telles é eleita como membro da Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira 16, fundada por Gregório de Mattos. Mais recentemente, conquistou o Prêmio Camões, um dos mais importantes da literatura portuguesa brasileira.

Lygia é uma das peças referenciais para a Literatura Brasileira. Com a ousadia de uma escrita intimista e ao mesmo tempo reveladora, ela compôs dez livros de contos, quatro romances, um livro de memórias e um roteiro de cinema, mostrando a pluralidade do seu trabalho e a habilidade quando o assunto é a palavra.

Antes dele se pôr

Geórgia Pereira, Acadêmica de Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina - UEL.


“Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar e te mostrarei o pôr-do-sol mais lindo do mundo”. É com esse discurso que Ricardo começa a convencer Raquel e entrar naquele velho cemitério abandonado. Ambos são personagens do conto “Venha ver o pôr do sol”, de Lygia Fagundes Telles.

Ricardo marca o encontro num lugar onde eles possam ficar a sós. Ao chegar no local, a jovem rejeita a idéia, acha o local sinistro e fica resistente, não querendo entrar no cemitério. Mas Ricardo convence que aquele encontro era importante para ele, talvez o último que eles teriam, e ela acaba cedendo ao poder de convencimento do rapaz.

Ela estava comprometida com outro homem, mais rico que Ricardo. Agora, Raquel era uma mulher que havia deixado de usar “sapatões sete léguas” e passou a usar saltos, fumando “cigarrinhos pilantras”. A jovem teria mudado seu estilo e comportamento em função do novo relacionamento e sabia que isso incomodava Ricardo, que não tinha as mesmas condições financeiras para satisfazer sua amada.

No desenrolar do conto, Lygia Fagundes Telles dá pistas da conduta de Ricardo e o que ele planeja fazer com Raquel. “Ele apanhou um pedregulho e fechou-a na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor de seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente ficou envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram” Neste trecho, a autora revela o preparo do jovem em guardar a pequena pedra que ele usaria logo depois. Ao pensar no seu ato, sua aparência se altera, ficando com feição de pessoa má.

Após entrarem no cemitério eles relembram fatos passados, do tempo que existia amor entre eles. Esse resgate permite uma maior aproximação da vítima, tocando-a pelo sentimentalismo. Conduta similar no assassino que deseja envolver a vítima. Mas no próximo diálogo ele anuncia o que seria uma morte perfeita “nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer”. Aqui Ricardo apresenta seu desejo de morte para Raquel. Apesar disso, o narrador, que é em terceira pessoa, não mostra que ela tenha percebido a dimensão de tal comentário, pois a jovem jamais julgou a crueldade que seu ex-namorado pudesse ter e se mostra, em alguns momentos, até mesmo ingênua.

As descrições feita pela autora permitem que o leitor entre no cenário apresentado. A riqueza de detalhes revela a capacidade de representar o local de forma muito próxima e favorecer a interação entre a obra e o leitor. “O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrava-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos enegrecidos como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte”. Tal descrição confirma a intenção do conto de camuflar a morte, apagar todas as marcas e torná-la lenta e silenciosa, assim como foi a de Raquel.

Durante a narrativa, Ricardo sempre se refere ao túmulo onde supostamente estaria sua família como “meus mortos”, “minha gente”. Apenas em um momento ele usa a palavra mãe, mas família nunca. Essa escolha sugere que ele possa ter assassinado mais pessoas, além de Raquel.

Dentro do jazigo, o conto atinge seu clímax. Ricardo readquire sua feição de malvado, com sorriso sarcástico, usando palavras doces e suaves, que ressaltam seu papel de vingador. O rapaz vai brincando com ela e reafirmando que ainda verá o pôr-do-sol, mas ela percebe que o encontro tinha outra intenção e o medo assola sua mente. Ele tranca a jovem no jazigo, e mesmo implorando para soltá-la, Ricardo não tem piedade alguma, pois tem a certeza que “nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado.” Ele vai embora, como se nada tivesse acontecido.

Este ato cruel é a forma doce da vingança que Ricardo encontrou para satisfazer seu orgulho, e esconder a rejeição que ele sentiu quando Raquel se envolveu em outro caso. Lygia aborda a crueldade humana de forma sutil e mostra que o homem interpreta o personagem que ele quiser, no momento que lhe for conveniente. É uma metamorfose velada que acontece a todo instante.

O conto fascina pelo modo de sua construção, com descrições ricas recriando o espaço no imaginário do leitor aliado as pequenas transformações sofridas pelos personagens que são justificadas no final da história. Mergulhar nesse universo apresentado por Lygia Fagundes Telles é ainda mais interessante quando acontece lentamente, se permitindo ser desvendado por ela e deixar que ela mostre a realidade camuflada pelas palavras.

O contexto histórico do Realismo literário

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


Riqueza e miséria, crescimento desordenado dos centros urbanos, mudança radical nos meios de transporte e comunicação, grande avanços científicos. A Revolução Industrial transformou a face da Europa e trouxe consigo a urgência de uma nova estética, capaz de refletir esse processo. O Realismo nasce para responder a essa necessidade.


* Um paradoxo capitalista: desenvolvimento e miséria

Em 1800 a população da Europa chegava a 190 milhões de pessoas. Cem anos mais tarde, 460 milhões. Esses números traduzem uma evidente expansão de mercado e do trabalho. Como o declínio dos tipos tradicionais de lavoura e o uso das máquinas, os camponeses foram expulsos do interior e iam para as cidades em busca de emprego nas indústrias e fábricas. Mesmo os grandes centros, como Londres e Paris, não contavam com uma infra-estrutura adequada para absorver um crescimento populacional tão grande. Logo começaram a enfrentar problemas graves, como as epidemias. Nesse contexto de pobreza crescente, a mendicância e a prostituição tornaram-se subprodutos indesejáveis e degradantes da sociedade.


* Novas doutrinas sociais

As transformações sociais exigiam novas maneiras de explicar a organização de mundo capitalista. Diferentes doutrinas surgiram para responder a esse desafio. O inglês Adam Smith acreditava que, uma vez removidas todas as restrições ao comércio e ao capital, o desenvolvimento econômico aconteceria de modo natural. Para ele, um Estado liberalista tinha a função de preservar a lei, manter a ordem e defender a nação. A proposta do liberalismo da não-intervenção estatal da economia foi associada a uma expressão francesa, laissez-faire, que pode ser traduzida como “deixar passar”.

O economista Thomas Malthus afirmava que a pobreza era uma espécie de lei natural, ainda que cruel. Para ele, o descompasso entre o crescimento populacional e a produção de alimentos gerava um estado de pobreza permanente e inevitável. Com base nessa justificativa “científica”, alguns setores da sociedade passaram a condenar ações governamentais que tivessem como objetivo ajudar os pobres.

Karl Marx, interessado pelos processos históricos, procurou identificar, no estudo das relações de trabalho e de produção, fatores que determinavam as condições de vida de seus contemporâneos. Juntamente com Friedrich Engels, Marx lançou o “Manifesto Comunista”, em 1848, obra a qual afirmava que o sistema capitalista oprimia as pessoas e as condenava à miséria. Segundo eles, o capitalismo condenava o proletário à pobreza porque a classe de maior poder econômico – a burguesia – também controlava o Estado, valendo-se de seu poder político para explorar trabalhadores e aumentar suas propriedades. Acreditavam q a sociedade resultante da revolta do proletário seria mais igualitária. As pessoas, livres, trabalhariam em conjunto pelo bem comum. Era esse o sonho comunista que prometia uma vida mais digna e justa para todos os cidadãos.


Realismo: a sociedade no centro da obra literária

A realidade das máquinas, dos transportes e das novas teorias sociais torna inviável a visão de mundo romântica, que projetava o indivíduo e seus dramas sentimentais o centro do universo. Os artistas, como pessoas do seu tempo, procuraram um novo parâmetro de interpretação da realidade. Foi assim que a objetividade ocupou o lugar do subjetivismo romântico e a valorização desmedida da emoção foi abandonada. Em lugar de tratar dos dramas individuais o olhar realista focalizará a sociedade e os comportamentos coletivos. Como estética literária, o Realismo procura analisar a nova organização social e econômica, detectando suas causas e denunciando suas conseqüências.

Os objetivos que norteiam toda a literatura realista: produzir, por meio da arte, uma representação da realidade que permita condenar o que há de mau na sociedade. O desejo de pintar a anatomia do caráter humano se explica pela necessidade de compreender a origem de práticas e comportamentos sociais negativos. Para fazer essa análise, os escritores realistas adotarão a razão e a objetividade como lentes através das quais observam a realidade. O que revelam é uma burguesia hipócrita e fútil, que explora o proletariado enquanto professa o amor à justiça e à igualdade. Esse comportamento será denunciado em boa parte dos romances escritos nesse período.