quarta-feira, 6 de maio de 2009

“Lucíola”: o amor de uma cortesã

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


O romance urbano ou de costumes, o romance histórico e o romance regionalista, são subdivisões da ficção romântica. No Brasil, o único autor a compor enredos privilegiando todas as tendências foi José de Alencar. Filho de ex-padre com a prima, Alencar seguiu os passos diplomáticos de seu progenitor. Uma viagem feita com este, aos nove anos de idade, produziu no autor romântico impressões marcantes, sobretudo as paisagens vistas, e que mais tarde foram retratadas em seus inúmeros romances.

Além de seguir os passos do pai na carreira política, Alencar obteve grande êxito como escritor, sendo reconhecido ainda em vida pela imaginação fértil, acumulando sucessos com as narrativas publicadas nos folhetins brasileiros do século XIX. Em “Como e porque sou romancista”, o autor conta que o estímulo para a criação literária veio dos romancistas franceses e do sucesso alcançado pelo brasileiro Joaquim Manuel de Macedo com “A Moreninha”. Em suas palavras: “Que estranho sentir não despertava em meu coração adolescente a notícia dessas homenagens de admiração e respeito tributados ao jovem autor d’A Moreninha! Qual régio diadema valia essa auréola de entusiasmo a cingir o nome de um escritor?”

“Lucíola” faz parte da trilogia “perfis de mulher” junto às obras “Diva” e “Senhora”, escrita pelo autor instigado com o sucesso de Macedo. Assim como os dois últimos, “Lucíola” também é um romance urbano. Como nas outras, esta ficção não se limita a contar uma história romântica. Ela apresenta uma estrutura pensada minuciosamente para conduzir o olhar do leitor a examinar mais detidamente alguns comportamentos que merecem análise e reflexão. Com tal ação, Alencar promove uma verdadeira crítica aos costumes de sua época.

Em “Lucíola”, Maria da Glória é exemplo de recato e pureza, até que as necessidades familiares a transformam na cortesã Lúcia, a prostituta mais procurada da casa noturna em que trabalha. Esse gesto de degradação moral tem uma função nobre: ajudar a família pobre vítima de febre amarela.

Ela era uma menina feliz de 14 anos e morava com os pais, quando, em 1850, sobreveio a terrível febre. Seus pais, os três irmãos, uma tia caíram de cama. Apenas ela ficou imune. No auge do desespero, resolveu pedir ajuda a um vizinho rico, Sr. Couto, que em troca de algumas moedas de ouro tirou-lhe a inocência. Nas palavras da jovem, "o dinheiro ganho com a minha vergonha salvou a vida de meu pai e trouxe-nos um raio de esperança."

Porém, seu pai sabendo da origem do dinheiro, e supondo ter a filha um amante, a expulsou de casa. Sozinha, sem ter aonde ir, foi acolhida por uma mulher, Jesuína, que, quinze dias depois, conduziu-a à prostituição, estipulando pela beleza de seu corpo um alto preço. O dinheiro, ela o usava para cuidar do que restava da família: "e eu tive o supremo alívio de comprar com a minha desgraça a vida de meus pais e de minha irmã".

Lúcia conhece Paulo, um jovem pernambucano, que chega no Rio de Janeiro em 1855. Ambos se apaixonam. A protagonista larga a vida noturna para viver esse amor. O pernambucano sente-se humilhado porque Lúcia abandonou todos os outros amantes para manter-se fiel somente a ele. Fraco, teme que a sociedade o imagine sustentado pela meretriz. Ela já não vibra como outrora, mesmo quando excitada por Paulo. É a doença que já se faz sentir. Paulo não entende essa frieza e por vezes se exaspera. Ela sofre calada, pois reconhece que "o amor para uma mulher como eu seria a mais terrível punição que Deus poderia infligir-lhe!". O grande sentimento que os unia, arrefece, dando lugar a uma amizade simplesmente.

O comportamento de Lúcia é cada vez mais sublime e heróico. Já não existe mais nada da antiga cortesã. E Paulo, por fim, entende essa nobreza de caráter e compreende o porquê das suas recusas após ouvir dela sua fatídica história. Ela lhe recusava o corpo porque o amava em espírito. E também porque já está doente. Paulo promete respeitá-la dali em diante.

Seguem-se dias tranqüilos. Lúcia muda-se para uma casinha modesta com sua irmã Ana. A tranqüilidade e felicidade são vistas por ela como algo impensável, já que nunca tivera: "isto não pode durar muito! É impossível!". É o pressentimento da morte. Lúcia tenta convencer Paulo a se casar com Ana, que já o ama também. Ele rejeita em nome do amor que sente por ela.

Lúcia aborta o filho que esperava de Paulo. Ela se recusa a tomar remédio para expelir o feto morto, dizendo "Sua mãe lhe servirá de túmulo". E já no leito de morte, recebe o juramento de Paulo prometendo-lhe cuidar de Ana como sua filha. E morre docemente nos braços de seu amado, indo amá-lo por toda a eternidade.

É assim que o romance urbano ou de costumes, a pretexto de contar história de amor, consolida o projeto literário romântico de divulgar valores morais e criar um espelho no qual o público burguês possa ver sua face refletida. Alencar escandalizou a sociedade de sua época com o romance, provocando reflexões e furor.

Sete faces do poema

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.

Muitas vezes não nos questionamos e não refletimos acerca da própria vida a fim de encobrirmos falhas. Não meditar a respeito dos sonhos fracassados, as ações não realizadas, consiste em uma maneira de deixarmos a ferida com um ingüento que não cicatriza, mas que entorpece por um determinado tempo. Nossa pseudo-felicidade é possível por nossa comodidade.

A poesia drummondiana faz justamente o
contrário, deságua no questionamento dos mais variados obstáculos que aparecem na vida do ser humano. Através do “Poema de sete faces” Carlos Drummond de Andrade convida-nos a refletir a vida. Para Theodor Adorno “a determinação do pensamento não constitui uma reflexão exterior e estranha à arte (...) Para podermos ser instruídos esteticamente, sempre exigem também ser pensado, e o pensamento, uma vez posto em jogo pelo poema, não pode mais ser suspenso”.

Contudo, para que às vezes consigamos pensar a vida é necessário um bom entorpecente. Algo que minimize o impacto do sofrimento, tão pungente ao rememorarmos certos fatos de nossa existência. Na estrofe “Eu não devia te dizer/mas essa lua/mas esse conhaque/botam a gente comovido como o diabo”, Drummond se utiliza de dois “ópios”: a embriaguez e a ironia.

O humor desencantado, o sarcasmo, a ironia funcionam como uma espécie de mola que impulsiona a emoção reprimida. A comoção atribuída à lua e principalmente, ao conhaque, os quais fazem o eu-lírico desabafar seu pessimismo, sua angústia, sua solidão, é explicado por Pierre-Aimé Touchard no seguinte trecho: “...há algo de mais profundo, de mais ativo na embriaguez, nesse momento fugitivo da êxtase que precede o abandono total. O homem sem ter perdido o controle de si próprio, constata, ao contrário, uma espantosa hipertrofia de sua força e opõem, seja à paixão, seja aos sonhos”.

A embriaguez torna-se a chave que abre a algema de toda a repressão moral, material, sentimental. Constitui-se um modo de fuga aos arquétipos sociais vigentes. Torna-se uma saída, uma válvula de escape, um subterfúgio à realidade que se impõe e cerceia. Dioniso, deus do desregramento, da desmedida, cujo impacto é a concessão (mesmo que por um momento fugaz) à evasão da realidade. Dioniso é convocado pelo sujeito lírico a libertá-lo e revelar as suas “sete faces".

Já a realidade é ditada por Apolo. Este, o deus da compostura, do comedimento, rege a quarta estrofe contrastando com os versos anteriormente analisados. “O homem atrás do bigode/é sério, simples e forte./Quase não conversa./Tem poucos, raros amigos/o homem atrás dos óculos e do bigode”. A adjetivação “sério, simples e forte” atribui ao sujeito características moderadas. Demonstra uma outra face, predominantemente sensata e prudente. O bigode constituinte do sujeito lírico reforça a idéia de “homem sério”. O homem que “tem poucos, raros amigos” sugere certa escolha ao círculo de amizades, distinguindo-o mais uma vez pelo comedimento e sugerindo precaução aos que lhe rodeiam.”.

O bonde representa o movimento. Ele “passa cheio de pernas” e causa indagação ao coração do eu-lírico: “para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração”. O movimento significa ação e contrasta com os versos imediatamente posteriores, os quais proporcionam um caráter de estaticidade. Observemos a estrofe: “O bonde passa, cheio de pernas:/pernas brancas pretas amarelas./Para que tanta perna, meu Deus,/pergunta meu coração./Porém meus olhos/não perguntam nada”.

A perda do bonde (movimento) e da esperança constitui o “Princípio da Realidade” agindo impiedosamente. Sigmund Freud é quem teoriza sobre os dois princípios básicos que governam o aparelho mental: o Princípio do Prazer e o Princípio da Morte – ou da realidade. Eles constituem as pulsões vitais do ser humano. Alfredo Bosi, crítico literário, expõe: “na invenção do texto enfrentam-se pulsões vitais profundas que nomeamos com os termos aproximativos de desejo e medo, princípio do prazer e princípio da morte”. Ou seja, o texto incorpora e sofre as pulsões vitais humana e herda o embate, constante no indivíduo, entre o desejo e o cerceamento desses desejos.”.

A proposição de Freud é que o contínuo progresso civilizatório baseia-se na constante subjugação dos instintos humanos. É através da civilização - normas, regulamentos e sanções – que o indivíduo pauta-se quanto ao que pode ou não fazer. Herbert Marcuse interpreta a teoria freudiana da seguinte forma: “Para Freud, a livre gratificação das necessidades instintivas do homem é incompatível com a sociedade civilizada: renúncia e dilação na satisfação constituem pré-requisitos do progresso (...) A felicidade deve estar subordinada à disciplina do trabalho como ocupação integral, à disciplina da reprodução monogâmica, ao sistema estabelecido de lei e ordem”.

A religião – mesmo que não tenha o mesmo vigor que desfrutou na Idade Média – constitui-se um dos pilares da civilização. É ela quem muitas vezes convencionaliza padrões morais os quais se tornam grandes empecilhos rumo a uma realização plena. O pecado é colocado como o caminho para o inferno. Não ser virtuoso implica numa série de punições terrenas – as quais de certa forma purgam o indivíduo. A punição mais severa, porém, é passar a vida eterna sem estar na presença do divino.”.

É esse divino que abandona seu filho na hora da agonia descrito na seguinte passagem da Bíblia: “Eli, Eli, lammá sabactáni? (Deus, meu Deus, por que me abandonaste?). Na quinta estrofe do poema, Drummond usa de intertextualidade bíblica e expõe a seguir a sua limitação: “Meu Deus, por que me abandonaste/se sabia que eu não era Deus/se sabia que eu era fraco”.

O poeta questiona o abandono já que não é um Deus onipotente. A indagação, quase uma súplica, reflete a busca para o significado para a vida, e encontra uma resposta pessimista: “Mundo mundo vasto mundo,/se eu me chamasse Raimundo/seria uma rima, não uma solução./Mundo mundo vasto mundo,/mais vasto é meu coração”.

Nesta estrofe, o transbordamento, a expansão do sujeito lírico é profunda. Vivendo tensões internas, entre os extremos das pulsões vitais, Prazer e Morte agem simultaneamente. Diante da vastidão do mundo, a fuga pela troca do nome formando rima, não solucionam a imensidão de desejos em seu coração. A questão do Raimundo remete-nos ao poema “José” também de Drummond. O José sem sobrenome, sem individualidade em função disto, se vê também sem alternativa. É a síntese do homem num beco sem saída. É o “Princípio da Realidade” limitando-o, suprimindo-o através das convenções do nominalismo.

O “anjo torto” anuncia seu nascimento chamando-o pelo nome e predestinando sua vida. A figura do anjo sempre associada à luz e bondade é quebrada quando se aponta “torto” e “vive na sombra”. O anjo já traça o caminho, sem deixar alternativa quanto ao uso do livre arbítrio. Vejamos a primeira estrofe: “Quando nasci, um anjo torto/desses que vivem na sombra/disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida”.”.

"Carlos” fora destinado a ser “o mais ‘gauche’ dos ‘gauche’ ” por seu “anjo torto”. O eu-lírico vive insatisfeito, desesperado, pois se sente desajustado, desajeitado neste “Mundo mundo vasto mundo”. É um mundo cuja “A tarde talvez fosse azul/não houvesse tantos desejos”. O azul é o ideal da espiritualidade, nega a matéria, choca-se com os desejos que anseiam por ela. A tarde talvez fosse transcendental se o homem não desejasse tanto... e os empecilhos para uma realização plena são muitos. O mundo com valores que reprimem e fazem o sujeito lírico sentir-se um “Eu todo Retorcido”.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) vive as tensões do mundo pós-guerra (a primeira), dos regimes totalitários (Nazismo, fascismo, a ditadura Vargas) e vivencia na alma a Segunda Guerra Mundial. A poesia neste momento, não só a drummondiana, é a expressão de um momento conturbado. A lírica drummondiana permite a evasão do mundo tão duramente real e civilizatório, alimenta a alma, preenche lacunas e supre necessidades tantas vezes reprimida, adiada, suspensa ou cancelada pela ação atroz do cotidiano, mas ela também conduz à reflexão. Vamos a ela!


“Longa jornada noite adentro”: o trágico em ser humano

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


... o passado que o atormenta e o presente incompreendido são ingredientes que expressam os desencontros existenciais de uma humana ruína, um vidro embaçado chamado memória, uma angústia hodierna e sempre latente


Um de nossos maiores poetas nacionais, Carlos Drummond de Andrade, na quinta estrofe do “Poema de sete faces” usa de intertextualidade bíblica e expõe a limitação do eu-lírico, o sentimento de abandono, a indagação estendida a todos os homens: “Meu Deus, por que me abandonaste / se sabia que eu não era Deus / se sabia que eu era um fraco”.

Longe de ser temática exclusiva de poetas, os sentimentos de abandono e fraqueza podem não vir exclusivamente de um Deus, mas daqueles que nos geraram biologicamente ou daqueles a quem chamamos de filho. E quando este abandono e essa fraqueza não é meramente física, mas essencialmente do âmago? E quando a orfandade subsiste mesmo em presença dos pais? A fraqueza de espírito pode ser hereditária? Como traduzir as agruras de uma vida de “presentes-ausências”? A culpa, se é que existe, deve ser acusada a quem: pai, mãe, filhos?

Eugene Gladstone O’Neill parece fazer sua busca por tais respostas dentro da ficção. Esta é um dentre os vários discursos circundantes na sociedade pelos quais elaboramos nossas diversas versões acerca da realidade. Considerado um dos maiores dramaturgos dos Estados Unidos, ganhador do Nobel de Literatura e de quatro prêmios Pulitzer – o mais nobre da literatura estadunidense -, O´Neill rememora fragmentos do passado a procura dos estilhaços angustiantes das suas relações familiares em um texto que conta um “dia-símbolo” na vida dos Tyrone pai - James, mãe – Mary, e os filhos James Júnior e Edmund, na verdade, James O’Neill, Ella Quinlan, James Junior e Eugene O’Neill.

Símbolo porque ao longo da peça mostra-se que a situação trágica exposta em menos de 24 horas na obra, retrata as mesmas peripécias que todos daquela família vivenciaram muitas outras vezes em seu cotidiano. Símbolo, também, porque a obra se configura na mesma linha mestra que O’Neill produzira suas outras peças, abarcando a “rudeza de seus personagens, na devassa que ele fazia de seus pensamentos e sentimentos mais íntimos. Desde o início, O’Neill permeou suas obras de uma ironia trágica. Quase sempre, homens alimentavam-se de sonhos que não conseguiam realizar, pois os caminhos escolhidos conduziam ao fracasso”, conforme a tradutora da peça, Helena Pessoa.

O trajeto que conduz à frustração não será diferente em sua obra-prima de cunho autobiográfico: pai, mãe e filhos objetivam mudar seus destinos projetando o futuro distante daquilo que foram no passado. Porém, as relações familiares turvas e conflituosas, a cada dia ressaltam a máxima de Eugene, “o único sucesso está no fracasso”, principalmente em sua “Longa Jornada Noite Adentro”.

Esta peça de O’Neill transcende 1941, data em que fora resgatada das memórias o passado doloroso e angustiante, de eu conflituoso. A inquietude existencial leva o dramaturgo-personagem a transcorrer memórias incertas, impasses identitários, o exílio sentimental em busca de “aflições consoláveis”. O autor se funde e se confunde ao narrador; e a presença de imagens pretéritas em meio ao texto, a mescla entre a realidade e a ficção, o passado que o atormenta e o presente incompreendido são ingredientes que expressam os desencontros existenciais de uma humana ruína, um vidro embaçado chamado memória, uma angústia hodierna e sempre latente.

A dedicatória da peça remetida à esposa, Carlota, revela-nos a autobiografia de um homem que inverteu a lógica em sua “própria escrita da vida” e que em vez de divulgar fatos abonadores de conduta, façanhas extraordinárias e elogios de parentes, amigos, colegas e admiradores, retratam feridas de sua família envolta em névoa constante. Dedicada aos doze anos conjuntos ao lado de seu então porto-seguro, aquela que lhe deu ancoragem nesse mar revolto chamado vida, O’Neill despe-se de todo o rancor que poderia ter em relação a seus familiares para, a partir do retorno ao passado, fazer uma viagem de perdão as quatro personagens acometidas de tragicidade:

“Minha querida, entrego-lhe os originais desta obra de velho sofrimento, escrita com lágrimas e sangue. Dom este que parece tristemente inadequado num dia em que só se deveria comemorar a felicidade. Mas você compreenderá. Quero que seja ele uma homenagem ao seu amor e à sua ternura, que me restituíram a fé no amor, o que permitiu finalmente afrontar os meus mortos e escrever este drama... escrevê-lo com profunda piedade, compreensão e perdão para os quatro angustiados Tyrone. Esses doze anos, minha amada, foram uma jornada para a luz... para o Amor. Já conhece a minha gratidão! E o meu amor. GENE”

A “jornada para a luz” atribuída à esposa é o paradoxo do título e da trama que se urde em contínua opacidade. A casa de veraneio da família Tyrone é o cenário da “jornada do dia para dentro da noite” entre névoas diurnas e a penumbra noturna e do alvorecer. Esse embaçamento ininterrupto metaforiza as relações familiares de um lar difuso, transitório, inconstante, sem a claridade suficiente para um “olhar-sentimento” nítido, para uma agudeza aconchegante de luz que reflete o ser.

Lamartine Babo definiu a condição humana da seguinte forma: “limitado em sua natureza, mas infinito em suas aspirações, o homem é um deus tombado que tem saudades do céu”. Mas o que é esse “paraíso perdido” na fala de Babo? Por que a saudade do céu? Quando começamos a sentir necessidade de regresso ao aconchegante paraíso e constatamos que o perdemos?

Samuel Beckett, dramaturgo e teórico irlandês, ao expressar a ausência das noções de certo e errado segundo Marcel Proust, afirma que somos lançados no inferno do mundo como seres trágicos no dia em que nascemos. Nosso pecado está na essência, está na origem e não entre os acordos firmados na idade devir: “A tragédia não diz respeito à justiça dos homens. A tragédia é o relato de uma expiação, mas não a expiação insignificante de uma quebra codificada de um acordo local, redigidos por patifes para usufruto dos tolos. A figura trágica representa a expiação do pecado original, do pecado original e eterno, cometido por ele e por todos os seus socii malorum [companheiros de infortúnio], o pecado de ter nascido”.

A afirmação beckttiana corrobora com a temática da peça de O’Neill. Através dessa jornada emblemática de um dia desses “companheiros de infortúnio”, tomamos conhecimento do constante jogo de culpas, acusações e expiações em que todas as personagens se auto-punem e punem ao outro. É a tragédia compartilhada entre quatro heróis os quais expõem suas desgraças internas e externas – estas os alimentam com a certeza de que realmente são deuses tombados e seu paraíso está longe de ser restabelecido. A árdua tarefa reconhecida pelos heróis, destituídos de qualquer glória, é suportar os infernais dias de sofrimento em busca de expurgação mútua. O imenso “edifício de recordações” são revelados em “Longa Jornada Noite Adentro” de maneira trágica refratando vidas suspensas e dilaceradas pelo desespero, medo, arrependimento, angústia, fuga – sentimentos estes aliados ao amor, muitas vezes ausente, outras vezes no limite do ódio, larga e profundamente humanos.