sexta-feira, 13 de março de 2009

O fotógrafo: arqueólogo das emoções

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.

O açoriano radicado em Curitiba desde 1963, Orlando Azevedo, assim definiu a sua profissão: “Em seu percurso quase sempre solitário o fotógrafo é um verdadeiro arqueólogo das emoções mais ocultas, redescobre a pátina da memória, rasga a ansiedade e a razão, recolhe os pedaços e as cicatrizes sobreviventes e lhes dá corpo num roteiro em que a memória é uma ilha à deriva feito uma lava viva. A fotografia é a ressurreição da extinção.”

Sendo um dos protagonistas, nomeando a obra com a profissão e agindo feito um, o autor Cristovão Tezza atua como um “arqueólogo das emoções mais ocultas”. Publicado em 2004, seu livro “O fotógrafo” recebeu no ano seguinte o Prêmio da Academia Brasileira de Letras de melhor romance do ano e o Prêmio Bravo! de melhor obra.

“O fotógrafo” agrega diversas leituras, assim como toda a obra literária de qualidade (no site do autor - www.cristovaotezza.com.br - tem variadas críticas e informações disponíveis que valem ser conferidas!). Podemos ler o livro de Tezza como uma exposição de retratos contextual e pessoal. Em “fotos” panorâmicas do contexto, vislumbramos uma faceta da cidade de Curitiba no início do século XXI. O enredo se passa em um dia de 2002, em meio às eleições presidenciais, nas ruas Dr. Faivre, Comendador Macedo, Praça Santos Andrade, na Universidade Federal do Paraná, no Cine Luz – região central da capital paranaense.

Já a exposição de retratos pessoais tematiza cinco protagonistas (e algumas personagens secundárias) os quais precisam, desejam e vivenciam incertezas e possibilidades futuras tentando fugas da rotina cotidiana. A “mostra fotográfica” tem um poderoso foco de luzes que revelam e ocultam verdades, reações, emoções, sentimentos e expectativas entranhadas na vaguidão dilacerada das personagens. O habitual enfadonho soa como painéis desbotados na vida daqueles seres que almejam a restauração do brilho e qualidade das fotografias-vidas.

Existe uma tensão presente durante todo o romance, seja pelo entrecruzamento de informações e percepções, pelo estilo narrativo bem arquitetado pelo autor, seja pela fragmentação da realidade, das situações vivenciadas e sentidas por cada personagem dessa teia complexa.

Há articulações paralelas e constantes entre os cinco protagonistas: O fotógrafo – cujo nome não é revelado – é contratado por um homem para fotografar secretamente uma jovem a um preço de US$ 200 o rolo de filme (sem revelar); Íris, uma mulher com idade entre 20 e 30 anos, mantém um caso com um homem casado como forma de subsistência. Ela fascina o fotógrafo, provocando a ruptura do acordo entre ele e o contratante, e deixa entrever mudanças na vida do quarentão que vive o fim do casamento; a mulher do fotógrafo, Lídia, se apaixona por um professor de literatura, Duarte; e Mara, fecha as conexões. Ela é psicanalista, casada com Duarte, e analista de Íris, a jovem que tem o paparazzo em seu encalço, o fotógrafo.

O entrecruzamento de personagens lentamente é revelado e o conjunto disperso de angústias e anseios, em vozes múltiplas – consonantes pela solidão, dissonantes pelos desejos individuais – constitui-se como uma estratégia que garante leve e permanente tensão à narrativa.

As personagens compartilham ambientes próximos, chegando a se cruzarem, mas ignorando quem é o outro. É o leitor quem tem acesso às proximidades e coincidências. Lídia, por exemplo, sai de uma sessão de cinema acompanhada por Duarte no exato instante em que Mara surpreende o fotógrafo apontando a câmera para Lídia; Mara não vê Duarte, seu marido, com a aluna apaixonada. Lídia passa por Íris na saída do elevador na universidade, mas não sabe que ela é a jovem fotografada pelo marido. O leitor tem conhecimento dos encontros e desencontros, das ínfimas ignorâncias e distâncias que impedem a descoberta dessas coincidências; e o enredo move-se em estado de suspensão constante instigando o leitor ao próximo passo.

Cada um dos 25 capítulos corresponde a uma cena fotografada em suas minúcias e de diversos ângulos. A luz narrativa incide sobre essas cenas, nomeadas de forma similar àquelas que costumam singularizar as fotos artísticas e telas em exposição: “O fotógrafo encontra Íris”; “Lídia e Duarte vão ao cinema”; “Mara caminha pela cidade”, e assim por diante.

Além das cenas em si, captadas no exato instante em que elas ocorrem e sob perspectivas das diferentes personagens, o movimento incessante e sedutor do livro acontece, também, nos pensamentos dos cinco protagonistas, leva o leitor ao conhecimento das misérias, dos anseios, do mundo particular de cada um deles. Sem aviso prévio, a narração passa de uma personagem a outra, e desta para o narrador e é retomada por outra personagem.

Essa mobilidade dos fluxos de pensamentos autônomos, mas inter-relacionados – afinal, Mara pensa em Duarte que se sente atraído por Lídia resolvida a pedir o divórcio para o fotógrafo, o qual se encanta com Íris, paciente de Mara – são jogos de luzes sobre os “retratos pessoais” fotografados por Tezza. A intercalação de pensamentos e a multiplicidade de olhares numa mesma cena redimensionam a narrativa dos acontecimentos banais. As coincidências são reveladas aos poucos e a tensão permanece a cada página.

Numa engenhosa exploração da vida cotidiana, com todas as suas pequenas alegrias e muitos sofrimentos, Cristovão Tezza devassa tudo, desde casamentos frios que prosseguem por inércia dos cônjuges, a relações entre pais e filhos destroçadas e mudas (do fotógrafo e de Íris, respectivamente). A frase “A solidão é a forma discreta do ressentimento” inicia o romance e é reiterada por várias vezes ao longo do enredo. Ela parece nomear a exposição de retratos contextual e pessoal em que o curador – organizador do evento – é também o fotógrafo, pois tece habilmente a teia de intrigas e ilumina uma a uma ressaltando os traços mais marcantes.

Observando o tédio e mau-humor do fotojornalista (antes da contratação como paparazzo), o chefe discursa para “O fotógrafo” sobre a profissão dele: “Nunca se esqueça: Fotógrafos são pessoas amadas, amáveis e simpáticas; eles têm o poder de conectar as pessoas a elas mesmas; eles são mensageiros da identidade, e todo mundo quer uma identidade; eles são espelhos de circo, no bom sentido; eles têm o poder de melhorar o mundo na parcela que mais importa: o nosso rosto. Mais, muito mais que isso: só os fotógrafos podem revelar, de fato, quem nós somos. De dentro da nossa pequena caixa mental, não nos vemos; eles é que nos vêem, e nos estendem a nossa fotografia colorida: olha você aqui!”

Assim, ao devassar o interior das personagens, Tezza faz a lavagem das emulsões, fase importante do processo de revelação da fotografia analógica. Para preservar a conservação da foto por longo prazo, torna-se necessário remover todos os vestígios dos componentes utilizados nas fases anteriores, o que se consegue mediante uma lavagem cuidadosa com água. A depuração, em “O Fotógrafo”, é obtida a partir da minuciosa elaboração narrativa dos sentimentos, insatisfações, desajustes, desgastes nas relações humanas. Como afirmou Orlando Azevedo: “Que o silêncio da imagem seja o grito que guardamos”.




*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 397, página 11, 05/10/2007.

Watchmen: Quem está vigiando?

Fabio Alexandre Spanhol, Mestre em Ciência da Computação pela UFSC, Bacharel em Informática pela Unioeste e cinéfilo.

Em um mundo no qual super-heróis fantasiados são uma realidade, quem vigia os vigilantes?




Estreou dia 6, mundialmente nos cinemas, “Watchmen” (Watchmen, EUA, 2009) segunda incursão do diretor Zack Snyder (Madrugada dos Mortos, 300) no universo dos quadrinhos. O filme é a adaptação cinematográfica da obra homônima escrita pelo inglês Alan Moore, ilustrada por seu compatriota Dave Gibbons e publicada originalmente em 1986 como uma minissérie que dividia as 460 páginas em 12 volumes.

Moore, O "bruxo de Northampton", é “provavelmente o mais respeitado e influente escritor na história dos quadrinhos” nas palavras do escritor Gary Spencer Millidge. Dramaturgo, performático, cartunista, músico e ocultista, agregando suas qualidades profissionais e excentricidades pessoais, Moore foi um catalisador para a revolução dos quadrinhos.

Obra seminal, Watchmen inaugurou, juntamente com “O Cavaleiro das Trevas” (The Dark Night) de Frank Miller, a Era das Graphic Novels, iniciada justamente em um momento no qual os quadrinhos sufocavam-se em meio a uma crise criativa. As Graphic Novels inseriram os quadrinhos em um contexto adulto, provocando uma ruptura que os afastariam definitivamente do público exclusivamente infanto-juvenil de outrora. Muitos dos personagens tornarem-se atormentados, debatendo-se em tramas complexas permeadas por crises existenciais; imersos em mundos cada vez mais amargos e cínicos.

A quebra de paradigma foi tão intensa que os críticos literários da revista Time elegeram Watchmen para figurar na lista das 100 importantes obras literárias da língua inglesa no século XX, fato notável para uma Graphic Novel, normalmente tida como subcategoria menos relevante dentro da literatura.

Aclamado como uma das maiores obras de quadrinhos de todos os tempos, Watchmen sempre foi considerado não adaptável ao cinema, assim como já havia o sido "O Senhor dos Anéis", de J.R.R. Tolkien, até ser levado às telas com maestria por Peter Jackson. Talvez Watchmen de Znyder não seja magistral como a trilogia de Jackson, mas conseguiu o feito de manter-se fiel a obra original, impingindo as mudanças necessárias sem descartar o cerne narrativo complexo que consagrou a obra de Moore.

A trama enfoca uma realidade alternativa estendendo-se dos anos 1930 até o ano de 1985. Os EUA saíram vitoriosos da Guerra do Vietnã. Richard Nixon livrou-se do escândalo Watergate, promoveu mudanças na Constituição e reelege-se sucessivamente para a presidência. Um mundo retrô-futurista observa um relógio onipresente marcando sempre cinco para meia-noite. É o termômetro da eminente guerra nuclear com a União Soviética. Essa sociedade paranóica convive com os super-heróis do título. Homens e mulheres comuns que decidiram fantasiar-se para combater o crime.

Contudo, apesar da existência dos heróis - ou devido a ela - a sociedade não está melhor. Enredados em intrigadas políticas e guerras sujas, perseguidos e usados pela mídia que os tornou celebridades, os heróis estão desacreditados. Valendo-se do descontentamento generalizado, Nixon aprova a lei Keene e consegue banir todos os “vigilantes” para ilegalidade. Apenas o onipotente “deus em gênese” Dr. Manhattan (interpretado por Billy Crudup) e o truculento e amoral Comediante (Jeffrey Dean Morgan) são autorizados a continuar atuando, sob o comando e interesses do Estado. A maioria dos antigos vigilantes aposenta-se e muitos deles passam a enfrentar fantasmas do passado e crises da meia-idade, como Coruja (Patrick Wilson). O antes herói fantasiado Ozymandias (Mattew Goode), o homem mais inteligente do planeta, passa a atuar como líder de um império bilionário e multinacional. Enquanto todos os heróis estão aposentados, o diplomata Edward Blake é assassinado. Posteriormente descobre-se que Blake é a identidade secreta do Comediante. Inicia-se uma perseguição perpetrada pelo psicótico e violento vigilante conhecido como Rorschach (Jackie Earle Haley) em busca do assassino. Rorschach suspeita que haja alguém tramando matar todos os super-heróis. As descobertas de Rorschach revelarão uma conspiração muito maior e intrincada que suas suposições iniciais. Esse é o pano de fundo para o obsessivamente meticuloso Moore construir uma narrativa polifônica, um verdadeiro fractal semiótico carregado de tintas da Teoria do Caos para discutir megalomania, relativismo moral e a existência de Deus.

Convém ressaltar que o "bruxo de Northampton" simplesmente abomina Hollywood e raivosamente execra qualquer tentativa de ser creditado em adaptações de suas obras para o Cinema, apesar delas acontecerem: vide os interessantes "Do Inferno" (From Hell, EUA, 2001) dos irmãos Hughes e "V de Vingança” (V for Vendetta, EUA, 2006) de James McTeigue; o mediano "Constantine" (Constantine, EUA, 2005) de Francis Lawrence e o medíocre "As Aventuras da Liga Extraordinária" (The League of Extraordinary Gentlemen, EUA, 2003) de Stephen Norrington.

Devido às suas peculiaridades, Watchmen levou quase duas décadas para ser adaptado, trocando de mãos de estúdios, diretores e um sem número de versões do roteiro. Felizmente foi a visão apaixonada do roteirista David Hayter (X-Men, X-Men 2) que prevaleceu e parece ter agradado o próprio Moore. O inglês deixou isso explícito ao declarar a revista Empire que o texto de Hayter "é provavelmente a coisa mais próxima de um filme de Watchmen possível". Hayter trocou vários telefonemas com Moore durante os anos para pedir sugestões ao texto.

Ao assumir a produção, Snyder conseguiu a façanha de preservar o texto de Hayter (que assina o roteiro ao lado do estreante Alex Tse) e proteger o filme das 'idéias' comerciais dos executivos dos estúdios que financiaram o projeto.

Em sua essência, Watchmen é uma verdadeira amálgama de experimentação concebida por Alan Moore. O leitor é arrebatado por uma profusão de citações políticas, filosófico-literárias, alusões e estruturas metalingüísticas que remetem a própria linguagem dos quadrinhos desconstruindo os arquétipos do super-herói. A obra cinematográfica da mesma forma não é um ‘filme de super-heróis’, mas um ‘filme sobre super-heróis’ com outras pretensões. Certamente o filme pode ser pouco palatável para os não-iniciados e até mesmo obrigue a vê-lo mais de uma vez para estabelecer no espectador uma compreensão completa. Em um mundo no qual super-heróis fantasiados são reais, quem vigia os vigilantes?

PS:O epílogo do cinema difere um pouco do desfecho da obra original, mas ainda mantém toda a carga emocional e ideológica desta.


Dicas de Leitura:

  • Alan MOORE; David GIBBONS. Watchmen - Ed. Especial. Editora Panini Brasil, 2009.
  • ALAN MOORE: Portrait of an extraordinary gentleman. Leigh-on-Sea: Abiogenesis Press, 2003.

Dicas de Hipermídia:

*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 468, página 7, 13/03/2009.


terça-feira, 3 de março de 2009

As várias facetas de Machado de Assis

Clarice Pessoa, graduada em Letras, professora.


Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda de que descobre o encoberto.
Machado de Assis




Poeta, romancista, novelista, contista, cronista, dramaturgo, ensaísta e crítico, Joaquim Maria Machado de Assis nasceu e morreu na cidade do Rio de Janeiro, respectivamente, em 21 de junho de 1839 e 29 de setembro de 1908. Sua obra tem raízes nas tradições da cultura européia e transcende a influência das escolas literárias nacionais.

Filho de um pintor de casas mestiço de negro e português, após a morte da mãe foi criado pela madrasta, também mestiça. Adoentado, epiléptico, gago e de figura trivial, encontrou emprego como aprendiz de tipógrafo aos 17 anos de idade, começando a escrever durante seu tempo livre. Em breve, começou a publicar obras românticas. Colaborou regularmente na imprensa carioca.

Sua obra divide-se em duas fases, uma romântica e outra parnasiano-realista, quando desenvolveu seu inconfundível estilo desiludido, sarcástico e amargo. O domínio da linguagem é sutil e o estilo é preciso, reticente. O humor pessimista e a complexidade do pensamento, além da desconfiança na razão (no seu sentido cartesiano e iluminista), fazem com que se afaste de seus contemporâneos. A galeria de tipos e personagens que criou revela o autor como um mestre da observação psicológica.

Em 1869 Machado era um típico homem de letras brasileiro bem sucedido, confortavelmente amparado por um cargo público e num feliz casamento com uma culta senhora, Carolina Augusta Xavier de Novais. Naquele ano a doença fez o autor afastar-se temporariamente de suas atividades e, na sua volta, publica um livro extremamente original, pouco convencional para o estilo da época — "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881) —, que, juntamente com "O Mulato" (de Aluísio de Azevedo), constitui o marco do realismo na literatura brasileira. Das "Memórias" provém aquele pensamento do personagem que julga-se feliz por não ter deixado descendentes que perpetuassem o legado da miséria humana.

Publicou ainda mais dois romances de sua famosa tríade, "Quincas Borba" (1891) e "Dom Casmurro" (1899). Estes livros, ao lado de suas histórias curtas ("Histórias da Meia Noite", "Papéis Avulsos", "Histórias Românticas", "Histórias sem Data", "Várias Histórias", "Páginas Recolhidas", "Relíquias de Casa Velha", "Contos Fluminenses", "Crônicas") fizeram sua fama como escritor.

Urbano, aristocrata, cosmopolita, reservado e cínico, não se posicionou politicamente em questões sociais como a independência do Brasil e a abolição da escravatura, embora tenha escrito obra que enfoque as temáticas. Passou ao longe do nacionalismo, tendo ambientado suas histórias sempre no Rio, como se não houvesse outro lugar. O mundo natural inexiste em seu trabalho. Escreve com profundo pessimismo e desilusão que seriam insuportáveis se não estivessem disfarçados sob o manto da ironia e do humor inteligente. Foi o principal responsável pela fundação da Academia Brasileira de Letras e seu primeiro presidente; permaneceu nesta qualidade até sua morte.

O Machado poeta é menos conhecido e apreciado, apesar de sua primeira manifestação literária ter sido feita justamente com uma poesia ("Ela", publicado na "Marmota Fluminense"), aos 16 anos de idade.

Publicou quatro livros de poesia. "Crisálidas" (1864) e "Falenas" (1870) mostram nítida influência de Castro Alves, com alguma pregação dos ideais de liberdade. Em "Americanas" (1875) as influências alencarinas são patentes, e o próprio Machado vale-se do recurso da metalinguagem externa em uma importante advertência inicial de que o assunto do livro não era unicamente os aborígenes brasileiros. "Ocidentais" (1901) já mostra elementos do realismo: ironia, niilismo (descrença absoluta) e objetividade.

Em sua primeira fase, marcada por obras com traços claramente românticos, destacam-se os romances ”Ressurreição” (1872), “A mão e a luva” (1874), “Helena” (1876) e “Iaiá Garcia” (1878). A estrutura deles demonstra uma intenção evidente de divertir e moralizar, muito presa à forma imposta pelo folhetim da época.

Os romances da segunda fase machadiana concentram-se na vida falsidade da vida depois do casamento, marcado pela traição. A insistência nesse tema parece ter origem no pessimismo do autor, que vê as relações humanas sempre motivadas por interesse. Tal visão faz com que as personagens, reflexo das camadas dominantes, busquem proveito próprio, sem espaço para ações desinteressadas.

Considerado ícone da Literatura Brasileira e, reconhecido internacionalmente, em seus 69 anos de idade de vida, Machado de Assis nunca se afastou mais de 120 quilômetros do Rio de Janeiro. Suas obras são de domínio público e podem ser baixadas integralmente via internet. A dica de site é http://www.machadodeassis.org.br/. Nele existem diversas indicações de artigos, teses e monografias - nacionais e internacionais - sobre vida e obra do autor.

Piaf - o ‘grande’ pássaro francês

Geórgia Pereira, Acadêmica de Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina - UEL.


Franzina, tímida, com olhar desconfiado, cabelos curtos e desajeitados, trajando roupas escuras, sapatilhas gastas, mas com ar de moleca divertida. Assim foi Edith Giovanna Gassion, uma adolescente que perambulava pelas ruas de Paris no final da década de 20. De origem pobre, a jovem fazia uso da voz para ganhar alguns trocados e ter o que comer no dia seguinte. Mas o destino mudou.

De cantora de rua a ícone dos palcos, Edith tornou-se uma grande personalidade da música francesa nos anos 40 e 50. Sua história foi retratada no filme “Piaf – um hino de amor” (2007), estrelado pela atriz Marion Cotillard, que ganhou o Oscar em 2008 por essa interpretação, e dirigido por Olivier Dahan.

A obra é uma biografia musical que narra a trajetória de Edith. A trama foi construída de modo cronológico, porém, em alguns momentos, ocorre a quebra da linearidade pela inserção de cenas do futuro da vida da cantora (recurso denominado “flashfoward”), tornando a narrativa atraente e bem amarrada.

Os primeiros passos do símbolo da música francesa são incertos e impregnados de dificuldades. Edith Gassion nasceu em Paris, em 1915. Maltratada pela mãe alcoólatra que também cantava nas ruas da cidade, durante um período ela foi criada pela avó paterna dentro de um bordel do qual era proprietária. A menina vira o centro das atenções das mulheres que trabalhavam no local e tem uma relação carinhosa com Tinini, uma das jovens do bordel. As cenas com as duas são singelas e bonitas, numa relação maternal, coisa que a pequena francesa não teve com sua mãe biológica.

Tempos depois, o pai que havia deixado a pequena com a avó, volta para buscá-la e leva a menina para ajudá-lo no circo, onde ele trabalhava. Após um desentendimento com o patrão, o pai pede demissão do circo. Os dois vão parar na rua e tentam sobreviver com pequenas apresentações. A carência de recursos financeiros e uma vida sofrida, com falta de carinho e atenção constroem a vida da pequena parisiense.

E em um dos momentos de necessidade, em que o pai obriga Piaf a fazer alguma graça para agradar o público, a menina solta a voz timidamente, mas descobre que dentro de si existe o poder de cantar. A cena é comovente com traços de um momento epifânico para a menina.

Depois disso, o filme salta para seu dia-a-dia como cantora de rua na capital francesa, até ser descoberta por Louis Leplée, dono de uma casa de shows, que dá direção à vida da artista. É 1935 e Leplée a batiza de "la Môme Piaf", uma expressão francesa que significa "pequeno pardal" ou "pardalzinho", pois ela tinha uma estatura baixa (1m 48). Daí o título em francês “La Môme”.

Um dos pontos marcantes do filme é o romance da cantora com o conterrâneo boxeador. Em uma turnê em Nova Iorque, em 1948, conhece o pugilista francês Marcel Cerdan, com quem inicia um tórrido romance. Marcel vivia no Marrocos e morreu em acidente de avião em 28 de outubro de 1949 em um vôo de Paris para Nova Iorque, onde a iria reencontrar. Arrasada pelo sofrimento, Piaf aplica-se fortes doses de morfina. Seus grandes sucessos “Hymne à l'amour” e “Mon Dieu” foram cantados em memória desse amor. Marcel Cerdan é tido como o grande amor da sua vida.

Uma das marcas de Edith Piaf era o estilo incisivo e determinado para a escolha de músicas. Mudava de humor com facilidade, ficava irritada com qualquer detalhe que contrariasse sua vontade para a realização dos seus espetáculos e constantemente atuava sob o efeito da bebida e das injeções de analgésico que se tornaram seu vício. Mas nada disso impedia o seu desempenho no palco, a não ser no final de sua carreira, quando já estava debilitada e sofria de pequenos desmaios. Edith Piaf era teimosa, sem meias palavras, traços que intensificavam sua personalidade conflitante.

Mergulhada no sucesso, perdida entre amores e paixões, com uma vida de luxo e prazeres, além de uma conduta desregrada com direito a drogas e álcool, a parisiense Edith Piaf desfrutou de uma vida sem limites, o que a tornou extremamente efêmera. Morreu aos 47 anos, deixando um legado para a história da música francesa que se disseminou pelo mundo.

Aos apaixonados por filmes biográficos, Piaf – um hino de amor é emocionante. Aos amantes da música francesa a trama contagia e aos namorados do cinema a história é imperdível!

O Burrinho Pedrês, um burrinho roseano

Deisily de Quadros, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Graduada em Letras pela UFPR.





João Guimarães Rosa é um autor destaque do Modernismo brasileiro. Dentre outras razões destaca-se devido ao seu trabalho tão particular com a escrita, à renovação e transformação que faz do uso da língua. Em suas obras, convivem harmoniosamente termos coloquiais típicos do sertão mineiro, palavras que já estão em desuso, neologismos, aliterações e onomatopéias.

E é por meio desse trabalho com a linguagem que Guimarães reconstrói o sertão que, na verdade, é a imagem do mundo, e o sertanejo, que é, por sua vez, o retrato do próprio ser humano, que convive com problemas de ordem universal e eterna.

São essas imagens que remetem ao universal que estão presentes em “O burrinho pedrês”, a primeira das nove histórias do livro Sagarana (1946), cujo título é marcado pelo hibridismo – formação de palavras com elementos tomados a diversas línguas – característica tipicamente roseana: saga é radical de origem germânica e significa “canto heróico”, “lenda”, e rana, palavra indígena, quer dizer “espécie de” ou “maneira de”; temos, então, uma “espécie de lenda/de canto heróico”.

“O burrinho pedrês”, como as demais histórias de Sagarana, traz no início uma epígrafe, citada no corpo deste artigo, que condensa sugestivamente a narrativa e é tomada da tradição mineira, de uma cantiga do sertão. A palavra macho refere-se ao protagonista da história, o burrinho pedrês; carregado de algodão simboliza a carga que o ser humano leva no decorrer da vida; perguntei p’ra donde ia refere-se a costumeira indagação realizada pelos homens acerca da existência, os porquês da vida; e p’ra rodar no mutirão é uma metáfora do coletivo, da solidariedade humana.

A história toda acontece num dia de trabalho da Fazenda da Tampa, no centro de Minas. Major Saulo e seus homens se preparam para levar a boiada que seria vendida quando Sete-de-Ouros, um burrinho já idoso, aparece e é escolhido para servir de montaria neste transporte de gado, já que a maioria dos cavalos havia fugido no decorrer da noite.

Durante os preparativos para a viagem, sabe-se que um dos vaqueiros, Silvino, está com ódio de Badu, por este estar namorando a moça de quem gosta. Assim, tudo leva a crer que Silvino vai vingar-se de Badu. Major Saulo, sendo alertado dos boatos sobre a vingança, designa Francolim para ficar atento aos movimentos de Silvino.

No entanto, não há tempo para a vingança. Na volta para a Fazenda da Tampa após a entrega da boiada vendida, durante a noite, os cavalos empacaram, pressentindo o perigo. O Córrego da Fome – nome sugestivo, como todos os nomes nas obras roseanas – havia transbordado devido à chuva e todos resolveram esperar por Badu e o burrinho Sete-de-Ouros. Se o burro seguisse adiante era sinal de que não havia perigo, já que “os burros não entram em lugar de onde não podem sair”.

Sete-de-Ouros foi adiante e os cavalos seguiram-no. Oito vaqueiros - Benevides, Silvino, Leofredo, Raymundão, Sinoca, Zé Grande, Tote e Sebastião - e os seus cavalos se afogaram. Salvaram-se apenas Badu, que acabou montando Sete-de-Ouros porque, bêbado, foi o último a sair do bar no momento de iniciar a viagem de volta, e Francolim, que se deixou levar pelo córrego pendurado no rabo do burrinho. Já em terra firme, Sete-de-Ouros livrou-se de Francolim e seguiu para a fazenda. Ali, soltaram-no do vaqueiro Badu, que dormia, e dos arreios.

O conto é narrado em terceira pessoa e o narrador é onisciente – não participa da história – o que acentua na mesma a dimensão mítica, o encantamento. É o contador de histórias que ressurge, o homem coletivo, o aedo das narrativas gregas.

O conto já é iniciado com o uso da palavra coletiva e anônima: “Era um burrinho pedrês..”. Esta é a narrativa das fábulas, das lendas, cuja linguagem é atemporal, não datada, seja pela mescla de precisão e imprecisão documental no registro do espaço – “Era um burrinho pedrês vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro, ou não sei onde no sertão” – seja pela noção do tempo lógico que é muitas vezes substituída por uma atmosfera surrealista, quando os animais mudam de forma de acordo com as transformações da natureza – “os bois pareciam crescer no nevoeiro, virando sombras esguias de répteis desdebuxados, com o esguicho das bátegas espirrando dos costados” – ou ainda quando passado e presente se confundem nas histórias contadas pelos vaqueiros, nas quais perpassam sentimentos de amor, ódio e desespero.

A dimensão antropomórfica (semelhante à forma humana) que é dada à personagem principal (o burrinho pedrês) o qual vive imerso em seus pensamentos, ao touro Culundu, que mata o menino Vadico e, depois se arrepende, entrega-se ao desespero e é encontrado morto no curral, e também às cantigas da tradição popular inseridas no fluxo narrativo, as quais passam de geração a geração, dão ao conto o aspecto de atemporalidade e situam a narrativa no limite entre o real e o mágico.

A trama desse conto, como as demais narrativas roseanas, é aparentemente simples. “O burrinho pedrês”é, segundo a carta de Rosa enviada ao crítico literário João Condé, uma “peça não profana, mas sugerida por um acontecimento real, passado em minha terra, há muitos anos: o afogamento de um grupo de vaqueiros, num córrego cheio”. Ou seja, é a história da condução de uma boiada, num dia de chuva forte, a algum ponto indefinido do sertão, sob a tensão de um plano ameaçador de ciúme e crime. Porém, nos textos roseanos, há sempre um trabalho árduo com a palavra, um enredar e desenredar de histórias. O foco da narrativa está centrado em um burrinho, o Sete-de-Ouros, que é uma figura sábia e intensamente humana, que aparece pouco na ação, mas acaba dominando o universo da narrativa.

O burrinho pedrês, “miúdo e resignado”, “muito idoso”, “decrépito”, “em constante semi-sono”, tem o nome recoberto pela magia de um número místico – o sete – e pela força simbólica do ouro, representando a superação e a transcendência. É também uma metáfora da velhice – o burrinho, com sua vasta experiência conquistada ao longo dos anos, sabe se orientar onde cavalos de boa montaria esmorecem. E o animal, transformado em herói, propicia um questionamento acerca do saber dos homens, pondo em xeque a onipotência presunçosa destes, que julgam controlar o próprio destino, ignorando as inesperadas situações com as quais podem deparar-se.

Há ainda a metáfora da travessia do rio, um momento crucial, que é uma imagem freqüente na obra roseana. Representa a superação de obstáculos, a possibilidade de os fracos tornarem-se fortes, o caminhar de um estado a outro. Sete-de-Ouros, o velho burrinho filósofo de quem todos faziam pouco caso por se tratar de uma montaria de aparência velhaca, pôde regressar à sombra e ao capim da fazenda porque, ao lutar contra o destino, valeu-se da astúcia para escapar de uma tragédia, fazendo a travessia, travessia essa que deve permear também a leitura realizada pelo “ledor” de Rosa, para que vários sentidos do texto em questão sejam estabelecidos.



*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 389, página 11, 10/08/2007.

A “coisificação” do homem em “São Bernando”, de Graciliano Ramos

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


“Bichos. As criaturas que me serviram durante anos eram bichos. Havia bichos domésticos, como o Padilha, bichos do mato, como Casimiro Lopes, e muitos bichos para o serviço do campo, bois mansos. Os currais que se escoram uns aos outros, lá embaixo, tinham lâmpadas elétricas. E os bezerrinhos mais taludos soletravam a cartilha e aprendiam de cor os mandamento da lei de Deus.”

Com essa linguagem ríspida e reduzida ao essencial, a obra “São Bernardo”, de Graciliano Ramos, publicada em 1934, explicita a relação capitalista a qual domina por completo a vida do protagonista Paulo Honório.

O trecho acima é a definição dos trabalhadores dada pelo patrão. O substantivo “bichos” caracteriza, metaforicamente, os funcionários da fazenda São Bernardo, os quais podem ser “domésticos” ou “do mato” estabelecendo uma diferença no grau de civilidade. Luis Padilha, herdeiro falido da fazenda que agora pertence a Paulo, é “doméstico” por ser educado, civilizado. Casimiro Lopes, capanga de Paulo, não tem educação nem refinamento, segundo o chefe, por isso é considerado “bicho do mato”.

Os demais funcionários não chegam sequer a serem identificados. A metáfora escolhida para resumir sua condição ajuda a compreender como as questões sociais aparecem nesse romance de Graciliano Ramos: são “bois mansos”. O narrador-personagem, Paulo Honório, faz uma particularização deles: os “bichos” são os trabalhadores de modo geral e passam por “bois” aqueles que trabalham nos campos. As casas dos “bichos” são “currais” e seus filhos, os “bezerrinhos”.

Essa agudeza semântica em que muitas palavras são metáforas da relação de posse do homem pelo próprio homem, possibilita à obra “São Bernardo” uma leitura dentro do que o filósofo da Escola de Frankfurt, George Lukács, denominou “coisificação”.

Entende-se por “coisificação” um processo no qual cada um dos elementos da vida social perde seu valor essencial e passa a ser avaliado apenas como “coisa”, ou seja, quanto à sua utilidade, quanto à sua capacidade de satisfazer certos interesses. Lukács concebe o conceito de coisificação como produto de uma economia de mercado, em que tudo é medido a partir de seu valor de uso e de seu valor de troca. As pessoas se “coisificam”, pois precisam-se oferecer como produto num mercado que está em busca da melhor oferta. Essa “coisificação” desumaniza o homem e seu meio social, levando a uma sociedade de trocas despida de sentido e sentimento humanista. O homem é uma engrenagem da máquina capitalista como mostrou Charles Chaplin no filme “Tempos Modernos”.

Ao iniciar a narrativa em primeira pessoa, Paulo Honório pretende fazer, como no sistema capitalista, uma “divisão de trabalho”. Distribui a cada “amigo”, de acordo com a sua especialidade, uma função na construção do romance. Entretanto, tal procedimento não dá certo: “João Nogueira queria o romance em língua de Camões, com períodos formados de trás para diante. Calculem!”; “Padre Silvestre recebeu-me friamente (...) Está direito: cada qual tem as suas manias.”; “ (...) concentrei as minhas esperanças em Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, periodista de boa índole e que escreve o que lhe mandam (...) O resultado foi um desastre. Quinze dias depois do nosso primeiro encontro, o redator do Cruzeiro apresentou-me dois capítulos datilografados, tão cheios de besteiras que me zanguei: – Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safado, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma! Azevedo Gondim apagou o sorriso, engoliu em seco, apanhou os cacos da sua pequenina vaidade e replicou amuado que um artista não pode escrever como fala. – Não pode? perguntei com assombro. E por quê? Azevedo Gondim respondeu que não pode porque não pode.”

A relação interpessoal do narrador é exemplificada neste trecho do primeiro capítulo do romance. Ele “mandanas pessoas, sumariamente, como faz com o Gondim, a quem considera “uma espécie de folha de papel destinada a receber idéias confusas”. Também sumariamente, rechaça os participantes do projeto de escrever o romance, ora criticando (a João Nogueira) ora aceitando a recusa (Padre Silvestre), ora xingando (a Gondim).

Valendo-se de seus próprios recursos e sem indagar as vantagens materiais que o livro lhe traria, ou seja, mudando de atitude em relação à “divisão do trabalho” e ao retorno financeiro no início pretendido, Paulo Honório começa a escrever, narrando sua trajetória que vai de guia de cego a proprietário rural.

O protagonista do romance é órfão, criado por uma negra analfabeta, luta – com trabalho lícito e esforços ilícitos – para vencer na vida. Após ter conquistado e perdido fortuna e prestígio, descobre-se solitário e infeliz. Decide, então, fazer um balanço de sua vida. Nessa construção narrativa surgem os traços mais marcantes de uma personalidade “moldada” pelo contexto socioeconômico do qual fazia parte.

Ponto central do enredo e do processo de auto-análise do narrador, está o casamento com Madalena, uma professora de origem pobre. A convivência revela as diferenças entre os dois. Enquanto Paulo via nos empregados apenas um meio de obter lucro, não se preocupando, portanto, com a educação ou com a saúde deles, Madalena sentia a necessidade de humanizá-los. Essas divergências minam cada vez mais a estabilidade do casamento, reagravada pela desconfiança de Paulo, o qual se imagina traído por Madalena. A mulher, vítima do ciúme brutal do marido, suicida-se.

Paulo não consegue fazer de Madalena sua propriedade, contudo, é a perseverança humanística da esposa que faz o protagonista repensar sua vida escrevendo o livro. Na verdade, a partir do casamento, como observou o crítico Antonio Candido, "instalam-se na sua vida (de Paulo Honório) os fermentos de negação do instinto de propriedade, cujo desenvolvimento constitui o drama do livro". Ele sente uma estranha necessidade de escrever, numa tentativa de compreender, pelas palavras, não só os fatos de sua vida como também a esposa, suas atitudes e seu modo de ver o mundo.

O social e o psicológico se fundem em “São Bernardo” para criar uma obra de profunda análise das relações humanas. Diante de uma das muitas interpretações possíveis, a obra sugere que o homem cria para si estruturas sociais que acabam por gerar problemas graves, aprisionando a si mesmo dentro dessas estruturas.

Observa-se que o romance aborda o embate entre Paulo Honório e as demais personagens preconizando elementos estruturais e orgânicos que acabam por simbolizar o próprio sistema capitalista. Esse capitalismo emergente traz à tona problemas de relacionamento social, claramente vivenciados por Paulo Honório, mesmo sem perceber de imediato, o que só o faz quando da morte da esposa. Um desses problemas, preponderante na história é a "coisificação" a que, em níveis diferentes, submetem-se Paulo Honório, Madalena e os empregados com evidente degradação dos valores humanos.

Por meio de personagens como o protagonista de “São Bernardo”, Graciliano Ramos conduz seus leitores a uma análise progressiva da alma humana. Destituído de propriedades e prestígio, Paulo Honório é um “explorador feroz”, um “animal capitalista” sem capital. Suprema ironia para alguém como ele, que via as pessoas que lhe serviam como “bichos”, como “coisas” úteis. Quando escreve sua história ele próprio não passa de uma “coisa” sem utilidade, alguém perdido e sem valor de troca.



*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 395, página 11, 21/09/2007.

No meio do caminho tinha uma pedra: e agora, José?

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.




Nos dias atuais em que a competição, a individualidade, o pragmatismo são características valorizadas pela sociedade, a cobrança no vestibular de uma antologia poética gera diversos porquês, reclamações e pode ser a “pedra no meio do caminho” do vestibulando.

Antologia é um vocábulo de origem grega o qual significa uma coleção de trabalhos literários, geralmente poemas, agrupados por temática, autoria ou período. O escritor Carlos Drummond de Andrade escreveu durante mais de 60 anos e publicou mais de 25 livros de poesia, contos e crônicas.

"Antologia poética" é formada por poemas escolhidos pelo próprio Drummond, entre eles alguns clássicos que o popularizaram como "José", "Quadrilha", "Canção amiga" e "A máquina do mundo". Afirmou o escritor que não escolheu os textos poéticos pelo critério de qualidade nem pelas várias fases de sua carreira, antes preferiu localizar, certas características, preocupações e tendências que condicionam ou definem sua antologia como um conjunto. É possível entender tal coletânea como o espelho mais fiel de sua obra.

O livro contém nove seções, cada uma contendo material extraído de diferentes obras, disposto segundo uma ordem interna. Para cada unidade temática contemplamos fragmento de um poema visando proporcionar ao leitor pontos de partida para suas interpretações.

A primeira seção, “O Indivíduo” - o eterno conflito entre o eu e o social, é exemplificada com “Consolo na praia” em que diz: “Vamos, não chores/ A infância está perdida/ Mas a vida não se perdeu (...) O primeiro amor passou./ O segundo amor passou./ O terceiro amor passou./ Mas o coração continua.”

O desconsolo do eu-lírico pelas coisas que perdeu ou passou encontra alento na esperança do que ainda não se foi, pelo que continua. As vontades do “eu” entram em desconcerto com as do “outro” e não há re(solução), apenas o prosseguir até o próximo conflito.

Na segunda unidade, “A terra natal” - Itabira, o poema “Confidência do Itabirano” metaforiza as perdas contínuas e a nostalgia que o acompanham: “Alguns anos vivi em Itabira / Principalmente nasci em Itabira/ Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro./ Noventa por cento de ferro nas calçadas./ Oitenta por cento de ferro nas almas/ E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.(...) Tive ouro, tive gado, tive fazendas./ Hoje sou funcionário público./ Itabira é apenas uma fotografia na parede./ Mas como dói!”

Em “A família”, retrato de Itabira e vivências íntimas do menino, a infância é interpretada como algo mais bonito que as histórias do escritor Daniel Defoe, Robison Crusoé, como no poema “Infância”: “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo./ Minha mãe ficava sentada cosendo./ Meu irmão pequeno dormia./ Eu sozinho menino entre mangueiras/ Lia histórias de Robison Crusoé,/ Comprida história que não acaba mais./ (...) E dava um suspiro...que fundo!/ Lá longe meu pai campeava/ No mato sem fim da fazenda./ E eu não sabia que minha história/ Era mais bonita que a de Robison Crusoé.”

Na quarta seção “Amigos”, homenagem aos amigos reais ou intelectuais o poema dedicado ao colega-poeta, “Mário de Andrade desce aos infernos”, exemplifica o carinho e a estima que Drummond nutria pelos amigos: “Daqui a vinte anos farei teu poema/ E te cantarei com tal suspiro/ Que as flores pasmarão, e as abelhas,/ Confundidas, esvairão seu mel./ Daqui a vinte anos: poderei/ Tanto esperar o preço da poesia?/ É preciso tirar da boca urgente/ O canto rápido, ziguezagueante, rouco,/ Feito da impureza do minuto/ E de vozes em febre, que golpeiam/ Esta viola desatinada/ No chão, no chão”

“O choque social”, unidade em que exacerba a violência humana, agrega poemas de temática rude demonstrando a crueldade e a solidão humana levadas ao extremo. “Áporo” remete a três acepções existentes só em dicionários mais antigos. O termo áporo (do grego a+poros, sem passagem, sem saída) quer dizer, pelo menos, três coisas: 1. problema insolúvel; situação sem saída; 2. uma espécie de inseto que cava a terra; e 3. uma orquídea verde. Curiosamente, nem o Aurélio nem o Houaiss, hoje, trazem esses três significados. Ambos dão somente a primeira acepção a qual enfatiza a situação sem saída, também temática de “E agora, José”. “Áporo: Um inseto cava/ Cava sem alarme/ Perfurando a terra/ Sem achar escape/ Que fazer, exausto,/ Em país bloqueado,/ Enlace de noite/ Raiz e minério?/ Eis que o labirinto/ ( oh razão, mistério)/ presto se desata:/ em verde, sozinha,/ antieuclidiana,/ uma orquídea forma-se.”

A sexta unidade temática, “O conhecimento amoroso”, o amor altruísta (como só ele poderia existir), coloca o leitor a questionar o quão doador é seu amor. Trocas, exigências e reciprocidade; nada de abdicação, de altruísmo, de doação. No poema “Sentimento do mundo”, com “apenas duas mãos”, o amor é dolorido e fatídico: “Quando os corpos passarem,/ Eu ficarei sozinho/ Desfiando a recordação/ Do sineiro, da viúva e do microscopista/ Que habitavam a barraca/ E não foram encontrados/ Ao amanhecer/ Esse amanhecer/ Mais noite que noite.”

Para falar d’"A própria poesia” – metalinguagem, sétima seção temática – expõe nos poemas a explicação sobre o fazer poético: “Aquilo que revelo/ e o mais que segue oculto/ em vítreos alçapões/ são notícias humanas,/ simples estar no mundo,/ e brincos de palavra,/ um não-estar-estando, mas de tal jeito urdidos/ o jogo e a confissão/ que nem distingo eu mesmo/ o vivido e o inventado.”

Os “Exercícios lúdicos”, penúltimo tema, trazem o jogo e as conseqüências do amar e desamar; a “Quadrilha” dos amantes que se desencontram: “João amava Teresa que amava Raimundo/ Que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili/ Que não amava ninguém./ João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,/ Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,/ Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes/ Que não tinha entrado na história.”

O estar no mundo, sem concretizar e fechar todas as possibilidades, é abarcado na última unidade - “Uma visão, ou tentativa de, a existência”. O poema “Cerâmica”, de influência cubista, permite ver nos objetos a incorporação metafórica da inutilidade da vida: “Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara./ Sem uso,/ Ela nos espia do aparador.”

Um fragmento de uma crônica do escritor português José Saramago, a respeito do poema “E agora, José”, dá-nos uma idéia da complexidade do Drummond que poetizou a crueldade, o egoísmo, a efemeridade, o ser humano em suas diversas facetas: “Afasto para o lado os meus próprios pesares e raivas diante deste quadro desolado de uma degradação, do gozo infinito que é para os homens esmagarem outros homens, afogá-los deliberadamente, aviltá-los, fazer deles objetos de troça, de irrisão, de chacota – matando sem matar, sob a asa da lei ou perante sua indiferença”.

A colocação de Saramago evidencia a importância do indagar drummondiano sobre o estar no mundo, amar e desamar, enfrentar as pedras no meio do caminho, se aperceber um José sem saída, um ser humano acumulado de perdas e de esperanças. A poesia de Drummond é a expressão lírica das angústias humanas e transforma-se, assim, em espaço para investigar, analisar, questionar o homem. Sua poesia é eterna na definição que o próprio autor revelou: “eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força o resgata”.



*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 391, página 11, 24/08/2007.