terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

História e cultura afro-brasileira e indígena (II)

Valdeci Batista de Melo Oliveira, Doutora pela USP, docente do colegiado de Letras da Unioeste. Contato: val.melo@uol.com.br

A escola estuda as etnias de modo superficial e distante do cotidiano vivo das relações e práticas sociais e culturais

Como é sabido, a escola é um espaço de poder, e é ,oficialmente, o único espaço de educação que tem a incumbência legal de fomentar a formação por meio do conhecimento científico. Por isso tem sido catastrófico a prática costumeira de se negar a existência de uma outra história que não seja aquela já esquematizada pelo pensamento dominante, cujo vórtice de importância centra-se na cultura e história eurocêntrica como matriz de construção das identidades. O que nela sobra para a diversidade etnográfica, ou de gêneros? O resultado é serem, historicamente, apresentadas e representadas como algo exótico, folclórico, que reforçam e estimulam a homofobia. Num país formado por diversas etnias essa prática escolar chega às raias da criminalidade e da alienação neurótica.

Por outro lado, a escola estuda as etnias de modo superficial e distante do cotidiano vivo das relações e práticas sociais e culturais, postura que também reforça estereótipos, naturaliza os problemas raciais e sociais, justificando-os por meio de recursos da psicologia (por exemplo: índio é preguiçoso, negro é violento, etc). É por isso que diversos movimentos sociais têm reivindicado mudanças e realizado ações educativas que propõem uma nova postura e agenda da escola em relação aos grupos étnico-raciais que compõem o povo brasileiro.

Mas mudanças são processos que demandam tempo e empenho, pois elas devem desvelar os silêncios da história que revelam os mecanismos e dispositivos de elaboração hegemônica do passado postos, justamente, para frear as mudanças e, portanto, são instrumentos de manipulação da memória coletiva pela cultura hegemônica. Nesse sentido, o esquecimento constitui uma vala comum onde repousam atores e personagens anônimos e episódios e ações marginais, suprimidos e eliminados pelas narrativas históricas ortodoxas e convencionais. E se a memória histórica do passado influencia o presente, o controle sobre essa memória histórica torna-se um sólido instrumento de dominação, em que os negros e índios foram e são jogados ao léu da sorte ou no cadinho mais baixo do diferente a serem temidos ou menoscabados.

Entretanto, se a história realiza-se em movimentos que, a princípio, poderiam ser diferentes, ou seja, a concepção benjaminiana de tempo perdido não se encontra no passado, mas no “futuro”, isto é, nos sonhos, nos desejos, nas aspirações do não-realizado, daquilo que não chegou a se concretizar, mas que ainda se encontra voltado para o porvir, esperando condições de possibilidades para emergir qual uma utopia retrospectiva, a Lei 11.645/2008, que torna obrigatório o estudo da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena, na Educação Básica, traz à baila estas condições de possibilidades. Cabe a Unioeste aceitar o desafio de ajudar na construção do futuro que queremos outorgar em relação às identidades dos Índios e dos negros brasileiros.

O curso de especialização ofertado a todos os profissionais que buscam aperfeiçoamento profissional e diferencial no mercado de trabalho, pretende resgatar a luta dos afros–descendentes e dos povos indígenas que, por meio de pressões políticas e culturais, têm procurado fazer a inserção de sua cultura e história no currículo escolar brasileiro. Atitude que revela o reconhecimento da Educação formal como fértil campo de disputa das diversas classes sociais. Também se pretende demonstrar a importância e a fatia da cultura negra e indígena para a formação da sociedade brasileira, resgatando as suas contribuições nas áreas social, cultural, econômica e política, no que respeita à história do Brasil.

Nesse sentido, esta especialização pretende incorporar os conteúdos da História, da Literatura, da Arte e demais disciplinas acerca da cultura afro-descendente e indígena, como construtores da cultura brasileira tout court, não podem ficar restritos a propostas de transversalidade temáticas, mas devem ser conteúdos efetivos das grades curriculares e serem desenvolvidas para contribuir para o senso crítico dos alunos, professores e outros atores da educação.

Para tanto, é preciso implementar conteúdos e posturas filosóficas que contribuam para os professores repensarem seus valores e conceitos sobre as diversas etnias que compõem a sociedade brasileira, bem como repensarem seus propósitos com os alunos, reformulando toda uma forma de pensar e ver a cultura afro-brasileira e indígena, com vistas a desenvolver uma pedagogia do oprimido à Paulo Freire com referências às histórias das culturas afro-descendente e indígena, desde o período pré-colonial até a contemporaneidade.



*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação", do jornal "O Paraná", edição 464, página 07, 13/02/2009.


História e cultura afro-brasileira e indígena (I)

Valdeci Batista de Melo Oliveira, Doutora pela USP, docente do colegiado de Letras da Unioeste. Contato: val.melo@uol.com.br


Todo monumento da cultura é também um monumento da barbárie
Walter Benjamim


Nós brasileiros, no afã de construirmos uma nação conforme o olhar idílico que o imaginário eurocêntrico deitara sobre estas terras, deixamos insepultos os corpos milhões de índios e negros e derruídos que massacramos sob o peso da corvéia ou da violência sempre excessiva. Com o propósito de tirarmos do esquecimento o suor, o sangue e as vidas destes milhões que suportaram o peso de construir a 14.º economia do planeta, (2008), lembremo-nos de Walter Benjamim para quem “todo monumento da cultura é também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo”.

Nesse sentido, a difícil tarefa de escovar a história e a sociedade a contrapelo foi assumida, em parte, pelo Estado Brasileiro, com a recente criação da Lei 11.645/2008, de 10 de março de 2008 que altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena".

Depois da criação da Lei 11.645/2008 a tarefa é passada a toda sociedade brasileira, mas, especialmente às Instituições de Ensino Superior (IES) e às escolas, na figura concreta dos profissionais da Educação que devem executar a incômoda tarefa de escovar a contrapelo os livros didáticos; as posturas; os hábitos; as convicções; as formações discursivas e ideológicas; as salas de aulas; os planos de ensinos; os currículos, as mídias, para limpar deles o ranço e o ódio arraigados sub-repticiamente, as homofobias fascistas, travestidas de preconceitos, estereótipos e de todo o arsenal criado para oprimir e impedir a inclusão, quer dos negros quer dos índios quer de outros grupos e etnias. Na Região Oeste do Paraná, especialmente, em Cascavel, o preconceito chega às raias de algumas paróquias não aceitarem os padres negros ou alguns que nem negros são, mas possuem pele escura, como os indianos, dois deles não puderam ficar na Paróquia Santo Antônio.

Obviamente, que os padres banidos não foram forçados de forma direta a irem embora, há na cultura brasileira um imenso rol de estratégias mais sutis, subterfúgios e outros estratagemas de não se aceitar um padre negro numa paróquia, assim como de fomentar os preconceitos dentro e fora das salas de aulas.

Ações desse naipe estão espalhadas por todo território nacional, embora não faltem tentativas legais de exorcizá-las das relações sociais. De fato, desde os tempos da Primeira República (1839/1930) até a edição da Lei 11.645/2008, muitos passos foram dados até se chegar à atual incorporação do estudo das civilizações indígenas e africanas nas escolas brasileiras. Pode-se citar, por exemplo, a LDB de 1961 (art. 38, III) que determinava que diferentes culturas serviriam de base para o ensino da História do Brasil. Entre a criação da Lei e a sua prática nas relações sociais está o fosso da exclusão. E apenas em 2008 a legislação foi mais severa a ponto de exigir o ensino das duas culturas em escolas brasileiras.

Em função disso, pensou-se a especialização em “Ensino da cultura das artes e da história afro-brasileira e indígena na educação básica”, a qual pretende executar a parte que lhe couber desta tarefa de escovar o discurso hegemônico a contrapelo, em 2009, na Unioeste.

Por primeiro, trazendo à baila a história, a voz, a memória, o imaginário, as artes, a religiosidade, enfim, numa palavra, a cultura afro-brasileira e indígena, subsumidas nos porões da cultura hegemônica, pois como sustenta Paul Connerton, “não há dúvida de que o controle da memória de uma sociedade condiciona largamente a hierarquia do poder”.

Assim não foi por um mero esquecimento, ao contrário, foi por obra de um apagamento intencional e criminoso que empurrou os negros e índios, cada um na sua especificidade para as classes deserdadas, para as periferias dos grandes centros cosmopolitas, para as piores porções de terras. Pouco adiante acrescenta o mesmo Paul Connerton, “as nossas experiências do presente dependem em grande medida do conhecimento que temos do passado e (...) as nossas imagens desse passado servem normalmente para legitimar a ordem social presente.”


*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação", do jornal "O Paraná", edição 463, página 07, 06/02/2009.

"Senhora", de José de Alencar: reflexo do público leitor

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.

Para melhor entendermos uma obra literária devemos contemplar o que o crítico literário Antonio Candido denomina “texto e contexto”; a estrutura da obra – seu texto – é tão importante quanto o momento em que foi escrita – contexto.

A fim de esboçar uma das várias possibilidades interpretativas para o romance Senhora, de José de Alencar, focalizaremos em primeiro momento sua contextualização histórica enfatizando a escola literária da qual faz parte e o que isto implica para o texto.

O Romantismo é considerado a arte da burguesia, a qual buscava uma arte que se identificasse e disseminasse novos padrões de expressão artística que estivessem ligados ao cotidiano aristocrata. A corrente trás consigo marcas profundas da influência capitalista e da ascensão burguesa, marcada pelo individualismo e liberalismo, referências advindas dos ideais da Revolução Burguesa.

A arte romântica retrata a efervescência social e política, esperança e paixão, luta e revolução do cotidiano burguês. Quebrando os padrões clássicos, a arte deveria ser expressão da emoção, intuição e inspiração, de vocabulário simples, de liberdade formal, cheia de descrições minuciosas com emprego constante de metáforas e comparações.

No século XVIII Jean Jacques Rousseau já havia anunciado o mito do retorno à natureza: “o homem é bom por natureza, a sociedade o corrompe”. O movimento do Sturm und Drang (tempestade e ímpeto), precursor do Romantismo, recebeu influências deste filósofo francês iluminista. Dele advém o culto à natureza e o sentimento em oposição à razão. A valorização do sentimento e da emoção leva o autor romântico a explorar o subjetivismo, aspecto que produz uma literatura de tom intimista e confessional. Mas o Romantismo não é apenas isso.

A instauração do Romantismo no Brasil coincidiu com o processo de afirmação de nossa Independência. Os ideais políticos, artísticos e sociais dessa corrente literária vinham ao encontro das aspirações de criar no país uma efetiva consciência nacional. Significativamente, porém, o primeiro “grito” mais consciente do movimento não veio do país, mas de brasileiros que estavam em Paris: “Tudo pelo Brasil, e para o Brasil”, dizia a epígrafe da Niterói – Revista Brasiliense (1836). Pouco antes, Gonçalves de Magalhães, um dos diretores dessa revista, havia publicado em Paris Suspiros Poéticos e Saudades, primeira coletânea de poemas românticos.

Tendo Magalhães como pioneiro, a poesia romântica foi assim dividida: primeira geração – Indianista ou Nacionalista (principais membros: Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias); segunda geração – Mal do século ou Ultra Romântico (Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Junqueira Freire e Fagundes Varela); e a terceira geração – Condoreira (Castro Alves e Sousândrade). Muitos equívocos se formam ao tomar o grande mestre do Romantismo brasileiro como membro da primeira geração. Sim! José de Alencar teve obras indianistas, mas cuidado!, suas obras são prosas indianistas e históricas e não poesia!

Alencar, grande consolidador da literatura brasileira, dividiu suas obras em três categorias: romances urbanos; romances regionalistas e a supracitada, romances históricos e indianistas. É da primeira categoria a obra em análise nesse artigo; Senhora, um retrato apurado da sociedade burguesa carioca do século XIX, conta os encontros e desencontros dos protagonistas, estes, reflexo dos próprios valores e costumes dos leitores.

Conhecido mais como Senhora (embora o nome completo seja Senhora: perfil de mulher), o romance alencariano narra em terceira pessoa a história de Aurélia Camargo, que vive com sua mãe viúva e um irmão num subúrbio do Rio de Janeiro. Aurélia apaixona-se por Fernando Seixas e este por ela, de modo que combinam casamento. Porém, Seixas, abandona-a por outra mulher a qual tem dote (quantia em dinheiro ou bens dado ao noivo) para o casamento. Uma herança inesperada beneficia Aurélia, propiciando-lhe a oportunidade de reconquistar o seu amor.

Aurélia tem 18 anos e não podendo gerir legalmente seus bens, tem um tutor que supostamente coordena suas finanças. É Lemos, seu tio e tutor, quem fica incumbido de propor a Seixas um casamento com uma moça de grande dote. Impõe, no entanto, que ele aceite a proposta sem conhecer a identidade da noiva. Seixas, endividado, aceita a oferta. Ao saber que a noiva é Aurélia, fica enormemente feliz. Mas, na noite de núpcias, Aurélia lhe revela a verdade sobre o casamento: era apenas uma vingança pelo abandono no passado; e mostrando-lhe o recibo, expulsa-o do quarto, conforme acompanhamos a seguir as falas transcritas da obra:

“- Aurélia! Que significa isto?

- Representamos uma comédia, na qual ambos desempenhamos o nosso papel com perícia consumada. Podemos ter este orgulho, que os melhores atores não nos excederiam. Mas é tempo de pôr termo a esta cruel mistificação, com que nos estamos nos encarnecendo mutuamente, senhor. Entremos na realidade por mais triste que ela seja; e resigne-se cada um ao que é, eu uma mulher traída; o senhor, um homem vendido”.

A partir daí, o relacionamento entre eles se torna hipócrita. Diante de estranhos, representam um casal perfeito. A sós, Aurélia o trata como sua propriedade e Seixas aceita-se como tal até que, um pouco pelo trabalho, um pouco por sorte, consegue juntar o dinheiro que deve a Aurélia, quitando, assim, sua dívida, recuperando seu orgulho e resgatando sua liberdade. Com a possibilidade da perda, Aurélia busca o perdão de Seixas pela atitude vingativa e os dois jogam-se nos braços um do outro, “vivendo felizes para sempre”.

O livro se divide em quatro partes: “O Preço” - narra os episódios em que Aurélia e Lemos conseguem desfazer o acordo de casamento entre Seixas e Adelaide e consegue negociá-lo para a protagonista; “Quitação”- fala-nos do passado de Aurélia justificando a fortuna herdada; “Posse” – a trajetória do casamento e a humilhação que Seixas sofre; “Resgate” – a redenção de Seixas e o happy end das personagens.

Alencar, através de Aurélia, faz uma dura crítica à sociedade da época: a moça declara ter comprado um marido por ser este um “traste indispensável às mulheres honestas”. Como mulher, Aurélia é independente, capaz de cuidar da própria vida e até mesmo de gerir sua fortuna. Mas se vê obrigada a atender às exigências sociais da época, a qual esperava que as moças se casassem a fim de assumir o perfil idealizado das moças honestas.

A crítica, porém, não apaga a história de amor. Pelo contrário, faz com que o sentimento surja cada vez mais valorizado como força redentora de todas as faltas. É o amor que sente por Aurélia que desencadeará a transformação em Seixas. Recuperada a dignidade e o caráter de Fernando, Aurélia está livre para declarar seu amor. Como seria de esperar, o romance termina com a reconciliação dos amantes. Essa reconciliação faz compreender que algo socialmente aceito, o casamento por interesse e conveniência, era moralmente condenável.

Para Antonio Candido o romance Senhora trata “da compra de um marido; e teremos dado um passo adiante se refletirmos que essa compra tem um sentido social simbólico, pois é ao mesmo tempo representação e desmascaramento de costumes vigentes na época, como o casamento por dinheiro. Ao inventar a situação crua do esposo que se vende em contrato, mediante pagamento estipulado, o romancista desnuda as raízes da relação, isto é, faz uma análise socialmente radical, reduzindo o casamento ao seu aspecto essencial de compra e venda”.

É assim que os romances de costume vão, a pretexto de contar histórias de amor, consolidando o projeto literário romântico de divulgar valores morais e criar um espelho no qual o público burguês enxergava-se refletido a sua própria face, provocando a consciência.


*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 385, página 11, 13/07/2007.

O amor decantado

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


A noção de escolha assegura a autonomia do indivíduo e esta pode estar em conflito com os interesses coletivos



O que nós chamamos atualmente de amor parece recobrir um sentimento, um movimento interior que justifica uma escolha presidida pelo afeto e que envolve sexo, prazer, exclusividade, casamento, filhos e a duração do próprio sentimento: o verdadeiro amor não morre. Será que o amor sempre foi compreendido assim? O que é o amor? O amor é? É possível delimitar e fundar alguma coisa, algum lugar, algo sobre o movimento amoroso? O amor é a sublimação do desejo sexual?

Na obra Amor: do mito ao mercado, o autor André Lázaro redimensiona o conceito de amor através dos séculos. O livro divide-se em duas partes – a primeira é composta por onze capítulos os quais focalizam a questão do amor a partir de alguns textos que formam parte da tradição amorosa ocidental (pensada enquanto legado histórico, cultural e socialmente difundido) e textos que versam sobre ela. A segunda parte tem por objetivo examinar a formação do mercado cultural, sua relação com o desenvolvimento da subjetividade ligada ao público e o papel do tema do amor nos produtos destinados ao mercado.

Lázaro inicia a temática enfocando o “amor no mundo pagão antigo” explicitando a reprovação quase generalizada que a Grécia Clássica tem com relação à paixão amorosa e a crítica que se faz ao indivíduo livre quando escravizado por suas paixões.

Em Platão, através de Eros, os homens e as realidades entram em contato. Mais: é por essa possibilidade que a relação erótica pode ser um método de conhecimento da verdade. Só a verdade satisfaz o desejo. O amor é um método filosófico que conduz à verdade; ele é um meio para a alma unir o sensível e o inteligível no saber corporal. A renúncia, o abandono do corpo em favor dos sentimentos castos é nomeado por Platão como amor. O controle do desejo resultaria no verdadeiro Eros, o amor filosófico ritualizado pela virtude, o caminho para reconduzir o homem de saber à plenitude do Cosmos.

A noção de “amor ágape” sistematizada pelo apóstolo Paulo, ocupa lugar central na doutrina cristã e seus desdobramentos marcarão de forma nítida a moral e a ética do Ocidente. Esta doutrina resulta da combinação entre correntes pagãs do período helenístico, ensinamentos do judaísmo presentes no Antigo Testamento e a mensagem do Cristo. Ágape, traduzido para o latim como caritas (caridade), adquire o sentido de amor desinteressado e doador, afastado da sensualidade e da paixão, é mais importante virtude teologal, maior que a fé e a esperança.

O cristianismo, sendo uma religião de salvação, recusa o eu empírico – e essa renúncia torna-se um método em busca da verdade revelada (por Deus). Esta religião parece indicar um caminho através do qual o conhecimento do eu se dá pela renúncia e a progressão neste conhecimento apenas indica a necessidade de sua recusa. Renúncia e doação formam um jogo complexo por meio do qual se adensa a concepção do amor cristão.

Além de ser a expressão de uma moda literária, a poesia trovadoresca apresenta sinais que permitem interpretá-la como a codificação de um comportamento, o mapeamento e significado de sentimentos até então desconhecidos da linguagem social, revelando-nos o “amor da lírica trovadoresca”.

O código do amor trovadoresco pode ser lido no interior de um sistema de regras de conduta que participava do delicado equilíbrio social. Por um lado, este código realçava os valores cavalheirescos na medida em que sublinhava a coragem, o serviço, a submissão e o próprio controle do desejo como critérios de participação em um grupo qualificado socialmente. Ao mesmo tempo, o código do amor cortês oferecia à juventude uma bandeira de luta, a luta com o desejo, o uso da delicadeza, a sofisticação da conduta amorosa. O amor era um jogo de homens; era o exercício da disciplina e do controle do desejo. O amor delicado é um instrumento de civilização, uma das engrenagens do sistema pedagógico da corte expresso na lírica trovadoresca.

Já a peça Romeu e Julieta, de William Shakespeare, pode ser lida como a formulação do mito do “amor trágico”. Ali as tensões entre indivíduo e papel social, escolha e obediência à regra, vontade e destino encontram uma expressão que adquire valor paradigmático. Em Shakespeare, a noção de medida está comprometida e o amor torna-se condição para a verdade apenas quando nele se superam as dissimulações e os seres se tocam como que dotados da posse plena de sua interioridade.

A noção de escolha assegura a autonomia do indivíduo e esta escolha pode estar em conflito direto com os interesses coletivos. É neste sentido que assistimos em Romeu e Julieta um conflito entre a “sociologia da aliança” e a “psicologia amorosa”. Até então, aquela presidia a composição do casal e fundava o casamento. A partir daí a “psicologia amorosa” – entendida como dimensão interna do indivíduo – deve comandar a escolha do parceiro. Esta escolha significa eleição, atribuição de valor, como se o indivíduo tivesse a prerrogativa – antes pertencente à coletividade – de, fundado em sua autonomia, designar aqueles que merecem, por seu mérito, aquela atribuição.

O mundo moderno inaugura um novo lugar para o amor na vida social. O que se chama aqui de “amor moderno” quer indicar esta integração do desejo do indivíduo na ordem social. Por meio de procedimentos normativos estimula-se e disciplina-se o desejo, elaboram-se códigos que elegem objetos privilegiados, métodos de condução do indivíduo consigo mesmo e com os outros, modos de perceber e significar o próprio corpo e as potências que nele atuam. Ao amor moderno agregam-se os ideais dos trovadores, que fazem do sentimento uma escola, às idéias neoplatônicas, principalmente em sua experiência cósmica do amor, e ao individualismo democrático das repúblicas, que em oposição às tradições medievais reconhece a personalidade do indivíduo como fonte de valor e poder decisório.

Tudo leva a crer que foi a sociedade burguesa do século XVIII que construiu “um ideal de casamento que impõe aos esposos que se amem, ou que façam de conta que se amam”. O amor pode ser lido nos romances como um código que estimula a autoconsciência dos indivíduos quanto aos procedimentos adequados para participar do universo de valores sociais via matrimônio. A formulação romântica dará sustentação a esta autojustificação do amor através da inclusão da sexualidade e da valorização do sentimento como fonte de verdade. Entre o falso e o verdadeiro amor flutuam as máscaras sociais que adotam os procedimentos do código como comportamento desejado.

O amor é um paraíso, se visto com os olhos da economia política atual: ele fabrica seus valores de uso e seus valores de troca; absoluta alienação transferida ao “amor na contemporaneidade”. O mercado é vivo, competitivo, mobiliza o que é singular em cada um. Na dinâmica do século XX, massificação e individualização são dois processos simultâneos e complementares – trata-se de construir uma massa de indivíduos. “Podemos compreender esse processo de várias formas: ele significa a ampliação do controle social através da psicologização, ele corresponde aos mecanismos econômicos do capitalismo monopolista, ele expressa uma nova dinâmica entre o espaço social e o íntimo”. Mapear o indivíduo, indicar-lhe o caminho do paraíso, localizar o paraíso e a felicidade no interior do próprio indivíduo e abstrair as condições sociais em que isto se dá, são tarefas que o interminável discurso amoroso da indústria da cultura deve realizar. O mundo que a cultura industrializada constrói parece indicar que através do mergulho na individualidade é possível fazer a passagem para a harmonia cósmica que socialmente é impossível.

Eros, caritas, amor, em torno desses temas podemos acompanhar a construção de um valor que acaba por assumir um grau dos mais elevados, senão o maior, na hierarquia espiritual, em um livro fascinante de André Lázaro. Ainda que não seja sempre a mesma coisa, talvez possamos dizer que foi sendo elaborada e reelaborada – pela filosofia, pela literatura, pelas artes – uma atribuição de sentido ao movimento e a escolha do objeto desse desejo denominado “amor”. Vale a pena conferir Amor: do mito ao mercado.


*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 383, página 11, 29/06/2007.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Duas visões, um alvo: Machado de Assis e José Arbex Junior comentam a imprensa

Geórgia Pereira, Acadêmica de Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina - UEL.


(...)Ninguém arrancou aos fatos uma significação, e depois, uma opinião.
Machado de Assis

Um monstro! É isso que Machado de Assis representa para a literatura brasileira! Um monstro grande e robusto, não na estatura, nem no tipo físico, mas na sua capacidade intelectual, fazendo uso de seu ácido estilo crítico e sarcástico na forma magistral de arranjar as palavras. Ele marcou muito mais que uma época. Deixou sua sabedoria registrada na imprensa e nos livros que compõe sua vida e obra.

E, na tentativa de resgatar e comemorar o centenário da morte machadiana foi criada em setembro do ano passado a Lei número 11.522 que instituiu 2008 como o Ano Nacional Machado de Assis. Em função disso, o Ministério da Cultura prepara uma agenda repleta de atrações e eventos para rememorar sua produção literária. Está em discussão a apresentação de feiras de livros, conferências, e a homenagem para Machado que será realizada pela Bienal do Livro, em agosto, São Paulo.

Diante de tantas demonstrações, existe um espaço, em especial, que comemora o centenário de modo particular: a Academia Brasileira de Letras. Ali a programação é voltada para uma série de eventos, exposições, mostra de filmes, leituras dramatizadas, além do lançamento de novas edições de livros dedicados à sua obra. Para o dia 20 de junho está agendada a exposição “Machado Vive!”, que pretende fazer uma análise de 800 volumes da biblioteca do autor, e depois, em parceria com a Biblioteca Nacional, vai realizar a compilação desse material em um livro. A relevância de Joaquim Manoel Machado de Assis para a Academia Brasileira de Letras é histórica. Além de sua importância para a literatura, Machado foi um dos seus fundadores e o primeiro presidente da instituição.

Dono de uma escrita única, ele deixa seu legado nas poesias, romances, peças teatrais, contos e crônicas. Dentro desta última modalidade, o escritor carioca abordou os mais variados temas, retratando as minúcias do seu tempo. O cronista Machado de Assis galopou entre o riso e a ironia, o efêmero e o duradouro, viajando do real ao imaginário, e acrescentou detalhes de um cotidiano, destilando todo o veneno (se que é assim pode-se dizer) de uma sociedade, que por ora, se apresentava mesquinha e hipócrita. O “velho bruxo”, como era conhecido, escreveu para o “Diário do Rio de Janeiro”, no século XIX, e ali criticava a postura das classes sociais, além de analisar o comportamento da imprensa da época.

Machado de Assis era contundente em suas análises. Como no fragmento dessa crônica “toda a gente contempla a procissão na rua, as bandas e bandeiras, o alvoroço, o tumulto, e aplaude ou censura, segundo o abolicionista ou outra cousa; mas ninguém dá a razão desta cousa ou daquela cousa; ninguém arrancou aos fatos uma significação, e depois, uma opinião. Creio que fiz um verso” (Bons dias 11 de maio de 1888), ele martela na passividade da população, da não reflexão perante o desenrolar dos fatos, e procurava inquietar os leitores, com seus argumentos.

Hoje, uma das causas que podem ser citadas à falta de reação e argumentação que muitos leitores apresentam depois de entrar em contato com os fatos, especialmente os polêmicos, é o grande fluxo de informação, pois a preocupação em saber o que está acontecendo é maior do que a necessidade de reflexão do que foi dito anteriormente.

No livro Showrnalismo: a notícia como espetáculo (2001), o jornalista José Arbex Junior questiona a instantaneidade da notícia, que ao ser publicada já se torna velha. A velocidade no mundo interconectado aumenta progressivamente, exigindo sempre a renovação, e não a reflexão do que é divulgado. Tal seqüência é designada pelo autor como a síndrome da “amnésia permanente”, classificada como o esquecimento instantâneo da informação, pois indivíduo já se prepara para a recepção de outra novidade que vai surgir imediatamente. “Isso poderia dar a impressão de que a sociedade é beneficiada por uma pluralidade imensa de pontos de vista distintos, possibilitados pela disputa entre as empresas da mídia pela originalidade da notícia. Mas não é bem assim que as coisas acontecem, até porque a sensação de “falta de tempo” para entender a fundo uma notícia estimula o recurso ao clichê, ao preconceito, a reiteração de concepções já formadas.”, defende Arbex.

De maneira geral, atualmente, os veículos desprezam os pequenos fatos, porque isso não se destaca e não atrai público. Já o cronista carioca gostava dos acontecimentos miúdos em detrimento da extrema exacerbação dos grandes acontecimentos, de maior relevância nacional. Machado, ao fazer o retrato do seu cotidiano apresentava outra inquietação: a espetacularização da notícia. “Não gosto que os fatos nem os homens se me imponham por si mesmos. Tenho horror a toda superioridade. Eu é que os hei de enfeitar com dous ou três adjetivos, uma reminiscência clássica, e os mais galões do estilo” (10 de julho de 1892).

Sobre a relevância da informação, Arbex relata que durante a década de 1990, ao dar palestras para universitários, perguntava a eles o que sabiam da Guerra do Golfo ou da Queda do Muro de Berlim. Poucos conseguiam montar uma narrativa desses acontecimentos. A maioria apenas se lembrava de imagens e fatos impactantes, ou seja, o espetáculo se sobrepôs ao conteúdo.

Em outra crônica o jornalista do século XIX narra que “Não é crível que tamanho número de pessoas se divirtam em rasgar o ventre alheio, só para fazer alguma coisa. (...) Recorre à navalha, espalha facadas, certo de que os jornais darão notícias das suas façanhas e divulgarão os nomes de alguns” (publicada na seção Balas de estalo: 14/3/1885). Nesta crônica, Machado revela o desejo da imprensa em promover notícias violentas, com forte impacto tanto na imagem quanto na escrita, chamando a atenção da população. Isso, como se sabe, estimula a informação sensacionalista e a sua constante produção, entrando numa designação que se pode chamar de jornalismo marrom. Então, surge “a capacidade adquirida pelas corporações de recriar sua própria imagem e a imagem do mundo, mediante a manipulação do imaginário coletivo”, pois é esse quem interessa para os veículos midiáticos, conforme Arbex.

O Machado de Assis do jornalismo de séculos passados acreditava que “o jornal é a verdadeira forma da república do pensamento. É a locomotiva intelectual, em viagem para mundos desconhecidos, é a literatura comum, universal, altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das idéias e fogo das convicções” (crônica “O jornal e o livro”, de 10 e 12/1/1859). Numa visão otimista, a veiculação diária das notícias surgia como uma alavanca social, sinal de desenvolvimento e progresso. Um dos desejos do velho bruxo, no seu exercício cotidiano da escrita, era usar o jornal como instrumento de denúncia, informação e formação.

Fica a dica de consulta ao site www.machadodeassis.org.br, da Academia Brasileira das Letras, no qual a pesquisa e difusão das obras machadianas são preconizadas e amplamente amparadas. Há diversas indicações de artigos, teses e monografias - nacionais e internacionais - sobre vida e obra desse “Monstro”.

Outra dica é o livro de José Arbex Jr., Showrnalismo: a notícia como espetáculo, da editora Casa Amarela (Summus).

Vale conferir!