sábado, 31 de janeiro de 2009

"Cavalos ou bois?" - eis a questão!

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


Um dos grandes literatos brasileiros, João Guimarães Rosa, tinha uma forma bastante peculiar de explicar a dificuldade de suas obras. Dizia o mestre que seus livros não eram feitos para cavalos os quais comem descomedidos e apressadamente, e sim para bois que engolem, regurgitam, mastigam devagar e só engolem “de vez” quando tudo está bem ruminado. A comida digerida, metodicamente, fecundará a terra.

A analogia de Rosa assemelha-se à interpretação de Antoine Compagnon sobre a leitura, esta vai em duas direções ao mesmo tempo: “Quando lemos, nossa expectativa é função do que nós já lemos – não somente no texto que lemos, mas em outros textos –, e os acontecimentos imprevistos que encontramos no decorrer de nossa leitura obrigam-nos a reformular nossas expectativas e a reinterpretar o que já lemos, tudo que já lemos até aqui neste texto e em outros”.

A reformulação de nossas expectativas e a reinterpretação do já lido é justamente o ruminar que propõe Guimarães Rosa. Ao pretender uma leitura não ingênua - baseada somente em impressões, é imperiosa a necessidade de regurgitar o repertório (o conjunto de normas sociais, históricas, culturais trazidas pelo leitor como bagagem necessária à sua leitura), mastigá-lo vagarosamente para que este venha a fecundar a terra, ou seja, avançaremos do nível primário de leitura pela revisitação de obras lidas anteriormente, estabelecendo elos entre elas e as que estão sendo lidas e, assim, ampliar a bagagem cultural, histórica e social, formando um “adubo” que fertilizará leituras posteriores em um continuum de aprimoramento.

Cada leitor se aproxima e experimenta o efeito da obra literária de forma diversa. A apropriação ampla ou apenas fragmentada da obra dependerá da capacidade maior ou menor de cada um de acercar-se dessa faceta parcial da realidade esteticamente esculpida que é a obra literária.

Há leitores análogos aos “bois”, descritos por Rosa, os quais lêem e relêem obras, e outros que seguem “manuais de malandragem literária” – como o apresentado na reportagem desta semana na revista Veja (edição 2008) em que vale tudo para se posicionar diante de qualquer obra: “Ler pela metade, saltar páginas e até opinar sobre o livro nunca lido”. Ao ensinar manobras para ser um bom fingidor o manual está colaborando com a precariedade da leitura e ajudando no enterro de obras literárias de qualidade que exigem várias leituras.

A leitura se efetiva quando o leitor se apropria do texto e faz correlações com outros textos lidos. Seu repertório ativará leituras anteriores e ampliará perspectivas futuras. Ao fingir leituras, o “cavalo” rosiano estará ingerindo comida imaginária. Não apenas deixará de expandir seu repertório, como resvalará em questões éticas já que a fraude intelectual e o engodo de si mesmo, questionam nossos valores.

Embora algumas apresentem dificuldades, toda obra e autor aspiram ser lidos e criam para isso um leitor modelo. Denominação utilizada por Umberto Eco, o leitor modelo é “uma espécie de tipo ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar”. Exemplo disto é quando Guimarães Rosa afirma que seus livros são feitos para bois, aqueles que ruminam – muitas vezes angustiadamente – suas obras e de forma lenta e repetida vão assentando e reformulando expectativas e leituras.

Rosa, o médico que não chegou a exercer a profissão mas medicou a literatura brasileira, argumenta que “o livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber”. É o não dito intencional da obra que cabe ao leitor descobrir, construir, unindo leituras anteriores e edificando saberes.

Eliana Yunes, professora e teórica da literatura, argumenta que a “sonegação”, sofisticação e densidade de uma leitura podem minimizar seu “raio de ação por algum tempo, mas não a condena ao esquecimento”. Complementa ainda, que muitas “leituras e seus ‘autores’ são resgatados ao longo da história e admirados por seu olhar de lince, sua capacidade de responder antecipadamente a questões da história, com novas histórias” entrelaçando, desta forma, diversas obras e abordando temáticas anteriores ao seu tempo.

A visão de Yunes também colabora com a reflexão de Eco de que “todo o artista aspira ser lido. Não existe correspondência particular de um artista que consideramos ‘experimental’ [...] que não mostre como aquele autor, mesmo quando sabia que ia contra o horizonte de expectativas do seu próprio leitor comum e atual, aspirava a formar um futuro leitor particular, capaz de entendê-lo e de saboreá-lo, sinal de que estava orquestrando a sua obra como sistema de instruções para um Leitor Modelo que estivesse em condições de compreendê-lo, apreciá-lo e amá-lo. Não existe nenhum autor que deseje ser ilegível ou ignorável”.

Ao adentrar o universo da obra literária o leitor se depara com diversas dificuldades. Talvez a maior delas é não ter o repertório exigido, não ser o leitor modelo apto a seguir as instruções do autor. É pela memória enquanto lembrança (“evocação”) e pelo exercício da rememoração, segundo Bergson, que uma história é reconstituída, “ruminada”. O leitor acessa o seu repertório para interpretar o texto. Mas em tempos de falácia intelectual em que livros são elaborados para ensinar a se posicionar diante de obras nem manuseadas, que dirá lidas!, como instigar a leitura? Como acessar o repertório?

Alguns autores tendem a abarcar em suas obras um “vocabulário atual” – leia-se, na maioria dos casos, paupérrimo; abranger assuntos atrativos, tentando aguçar a simpatia do leitor. Contudo, pontua o sociólogo Pierre Bourdieu de que “não é a simpatia que leva à compreensão verdadeira, é a compreensão verdadeira que leva à simpatia ou, melhor, a essa espécie de amor intelectualis que baseado na renúncia ao narcisismo, acompanha a descoberta da necessidade”.

Espelhar o meu eu, meus gostos e afinidades, aquilo que já está em mim, sem atrelar à “descoberta da necessidade” não ajudará a “fecundar a terra”. O processo de ruminação exigido pela obra de arte será substituído pela simpatia do espectador/leitor da obra. O fato de não simpatizar com o modelo de escrita, com o autor, com o hermetismo da obra abortará o “amor intelectualis” e acentuará o narcisismo.

Propor desafios ao leitor pode ser uma maneira de incitar à leitura. Iniciar com textos e/ou temáticas que formam o seu repertório é tentar seduzir pelo narcisismo, mas não se deve parar por aí. Romper com os horizontes de expectativas e acrescentar novos tipos de textos são cuidados importantes para a “fecundação da terra”. Cavalos ou bois – qual o tipo de leitores que desejamos ser e formar?


Dicas de Leitura:

  1. Antoine Compagnon. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Editora UFMG.
  2. Umberto Eco. Seis passeios pelo bosque da ficção. Editora Companhia das Letras.
  3. Eliana Yunes. Pensar a leitura: complexidade. Editora Loyola.
*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 377, página 11, 18/05/2007.

O “vão da porta”: abertura e restrição nas interpretações literárias

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.

O outro complementa nosso horizonte de visão
Bakhtin


Já dizia Lamartine Babo “limitado em sua natureza, infinito em suas aspirações, o homem é um deus tombado que tem saudades do céu”. Esta limitação desconcertante entranha-se nos anseios humanos de dar acabamento a si mesmo, de ter dominado a noções “quem sou e até onde posso ir”. Inquietações estas que embora encontrem ressonâncias na esfera teórica literária perpassam-na e adentram o multifacetado mundo bakhtiniano.

A imprecisão (quase descaso) que o ocidente destina ao oriente faz do russo Mikhail Bakhtin uma “certeza de dúvidas” para muitos pesquisadores e estudiosos. Autor de obras as quais foram assinadas por seus amigos e discípulos, e mais tarde reconhecidas como de sua autoria, Bakhtin tem seu trabalho considerado influente nas áreas de teoria literária, crítica literária, sociolingüística, filosofia, psicanálise, estética, antropologia, análise do discurso e semiótica. Suas discussões e teorias só foram conhecidas no ocidente, em conta-gotas na década de 70, nos anos 80 ganha relevância, atingindo grande prestígio e referencialidade póstuma nos anos 90 e adentra a atualidade de maneira vigorosa.

É do russo Mikhail Bakhtin o conceito de exotopia, o qual pode ser longamente esmiuçado aderindo diversas definições; porém, ficaremos com o proposto pelo professor Cristóvão Tezza que a define, de modo a simplificá-la: “Pelo princípio da exotopia, eu só posso me imaginar, por inteiro, sob o olhar do outro; pelo princípio dialógico, que, em certo sentido, decorre da exotopia, a minha palavra está inexoravelmente contaminada do olhar de fora, do outro que lhe dá sentido e acabamento. Em suma, no universo bakhtiniano nenhuma voz, jamais, fala sozinha. E não fala sozinha porque estamos, vamos dizer, mecanicamente influenciados pelos outros - eles lá, nós aqui, instâncias isoladas e isoláveis - mas porque a natureza da linguagem é inelutavelmente dupla”.

Ou seja, há uma limitação de horizonte quando se tenta dar “acabamento” ao eu, e que se transforma numa dependência em relação ao olhar e a voz do outro. Estamos em determinado ponto, temos um horizonte apenas e é o outro que pode nos completar, a partir do seu horizonte, integrando a visão que nos falta sobre nós mesmos. É assim também para o outro. Somos nós que damos acabamento ao outro, pois ele também sofre a própria limitação e depende da continuidade do olhar expressa através da voz alheia.

Mas por que abrangermos esse “diálogo entre horizontes díspares” para conversarmos sobre literatura? É a partir da linguagem e do olhar do outro que a literatura se forja. Em um livro temos diversos discursos – seja escrito, seja através de imagens – que trarão aos leitores, muitas vezes, um “universo de faltas”.

De fato, a literatura de qualidade, não a kitsch, a trivial-vulgar, são “dedos de prosa ou conversas poéticas” que propõem ao leitor reflexões em torno de si mesmo. Tal afirmação nos conduz ao francês Marcel Proust quando ele afirma que “Na realidade, cada leitor é, quando lê, o próprio leitor de si mesmo. A obra do escritor é somente uma espécie de instrumento de ótica que ele oferece ao leitor a fim de permitir-lhe discernir aquilo que sem o livro talvez não tivesse visto em si mesmo”. A literatura é uma das complementações de horizonte do ser humano, do leitor, e permite diversas leituras, pois apenas conduz leituras possibilitando ao leitor diferentes interpretações. Então vale tudo? Podemos interpretar um livro de infinitas formas?

Ainda que ofereça uma pluralidade de significações, há restrições ao quantificador “infinito” quando se refere a literatura. Toda boa obra tem o caráter perscrutativo o qual instiga aos leitores novas interpretações e pode ser visto como a “abertura” proposta por Umberto Eco em Obra Aberta: “embora não se entregue materialmente inacabada, exige [a obra – grifos nossos] uma resposta livre e inventiva, mesmo porque não poderá ser realmente compreendida se o intérprete não a reinventar num ato de congenialidade com o autor.[...] hoje tal consciência existe, principalmente no artista que, em lugar de sujeitar-se à “abertura” como fator inevitável, erige-a em programa produtivo e até propõe a obra de modo a promover a maior abertura possível”.

Embora materialmente compostos e encerrados, os textos literários conduzem por caminhos diversos, pois cada leitor traz uma existência particular e concreta, uma sensibilidade condicionada, uma determinada cultura, gostos, tendências, preconceitos pessoais, experiências de vida e outras situações em que o ajudarão na interpretação da obra.

Pensando nessa diversidade de percepções e ponto de vista, Umberto Eco salienta ao comentar sobre a finitude material da obra e abertura que ela propõe: “o autor produz uma forma acabada em si, desejando que a forma em questão seja compreendida e fruída tal como a produziu; todavia, no ato de reação à teia dos estímulos e de compreensão de suas relações, cada fruidor traz uma situação existencial concreta (...) de modo que a compreensão da forma originária se verifica segundo uma determinada perspectiva individual”.

Pode-se dizer, então, que a obra literária (e também as obras de arte como um todo) permite diversas possibilidades interpretativas dada a característica de abertura que possui. Contudo, esses “fios condutores” traçados pelo autor dirigem interpretações evitando, ou tentando restringir, significações estapafúrdias muito além do sugerido.

A literatura é plurissignificativa, mas não permite o “viajar na maionese”, já que o autor organiza uma “seção de efeitos comunicativos de modo que cada fruidor (leitor) possa compreender”, segundo Eco. Portanto, a abertura da obra é, na verdade, um “vão de porta”, uma frincha a qual propicia flexibilidades interpretativas, mas que também impede interpretações totalmente incompatíveis com o que foi proposto pelo autor.

Os diferentes pontos de vista – tanto das personagens quanto do autor – expressos na literatura, colaboram para ampliar o horizonte de visão do leitor, mesmo tendo liberdade restrita em relação às interpretações.

Cada receptor/interpretante de literatura tem seu “campo de visão” avantajado ao ler um livro. Seu discurso será permeado pelo discurso de outrem resultando num dialogismo a partir da exotopia. Ler é ampliar horizontes e dialogar com seres humanos/escritores e suas criaturas/personagens repletos de imaginação e técnica.

Fica a dica: leia sempre e propicie a você amplidão existencial e humanização por meio da literatura. Carpe Omnium!


Dicas de Leitura:

  1. Umberto Eco. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. Editora Perspectiva.
  2. Mikhail Bakhtin. Estética da criação verbal. Editora Martins Fontes.
  3. Cristovão Tezza (entre outros). Diálogos com Bakhtin. Editora UFPR.
*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 375, página 11, 04/05/2007.


sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Terrorismo e Democracia

Claudinei Aparecido de Freitas da Silva, Professor Doutor do Curso de Graduação e Pós-graduação (Mestrado) de Filosofia da Unioeste - campus Toledo. Contato: cafs@unioeste.br



A verdade é que vivemos em

meio a um 'fogo amigo' que está bem longe de apagar





Em Nova Iorque, em Madri, em Londres, no Iraque, no Líbano, mas também no Brasil... em cada alvo, uma mesma lógica que comanda, freneticamente, uma concepção de “terror” e de “democracia” que vem se pluralizando semanticamente, insuflando os limites a que nossa cultura chegara, já diagnosticados por Freud em o “Mal-Estar da Civilização”: o sintoma da neurose não poderia alcançar tamanha dimensão sem precedentes na história! E não será necessário listar, ao longo da história milenar, os incontáveis protagonistas do “bem” (de Nero a Bush, sem deixar de passar por Hitler, é claro) que jamais pouparam esforços no sentido de propagar seus feitos numa espécie de estandarte da democracia.

Ora, não são apenas as idiossincrasias pessoais de um líder ou uma facção parlamentar que determinam, por assim dizer, o curso em série dessas façanhas. A questão é bem outra: na superfície de razões culturais ou religiosas, tenta-se camuflar outra razão de base: a moral político-econômica. Assim, não é preciso ser cientista político ou economista para perceber os efeitos dessa lógica, cuja difusão assume, comumente, proporções astronômicas: “pelos frutos, se conhece a árvore”...

Em agosto de 1945, momento memorável do primeiro “teste atômico” sobre Hiroshima e Nagasaki, o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty tecia uma oportuna análise. “A crítica política não se ocupa somente com idéias, mas também com as condutas que tais idéias mascaram em vez de exprimir [...] se conhece melhor o homem por suas condutas do que por seus pensamentos” (Sens et non-sens, p. 122; 131). E, na mesma época, Einstein viria a expressar sua angústia: “O cientista sofre de que os métodos tecnológicos, que seu trabalho tornou possível, caiam em mãos dos expoentes moralmente cegos do poder político, econômico e militar; que a destruição universal seja inevitável”...

Mais do que simples “profecias”, tais análises ensejam uma leitura crítica fundamentalmente rigorosa. Cabe-nos desvendar as múltiplas faces do terrorismo e, por que não, de nosso conceito de democracia... Ora, Pinochet, Bin Laden e Sadam, nossos prediletos “bodes expiatórios”, são, de fato, atores de terror, mas, convenhamos: não podemos imputar-lhes, com direitos exclusivos, a patente de nosso já famigerado modelo trash de cultura política. Por trás de suas encenações há a direção de renomados “cineastas”, cujo roteiro cinematográfico dirige uma legitimidade que transcende a ONU e qualquer outro organismo social!

Em nome do capital e de sua expansão ad infinitum, inúmeras vidas apagam-se para sempre, num milésimo de segundo. Seja o ataque de “homens/bomba”, seja o voluntarismo milico por “amor à pátria” ou, ainda, a ação do “crime organizado” (PCC, CV...), a verdade é que vivemos em meio a um “fogo amigo” que está bem longe de apagar. É preciso discernir as diversas metamorfoses do terrorismo. A crise financeira solapante dos tempos atuais não deixa também de exprimir uma versão mais light do terror econômico, fruto de uma moral decadente que, desmedidamente, promove o “elogio ao consumo” como pacote de felicidade social.

Com isso, parece que chegamos, sem tréguas, a um novo conceito de democracia. Já é tempo de flagrar o “calcanhar-de-aquiles” desta “singela”, e quase sagrada, noção política. Voltemos, mais uma vez, a Merleau-Ponty: “Hoje sabemos que a igualdade formal dos direitos e a liberdade política mascaram relações de força, em vez de suprimi-las [...]. A fraqueza do pensamento democrático reside no fato de ser menos uma política e mais uma moral, visto que não coloca qualquer problema de estrutura social e considera as condições do exercício da liberdade como dadas com a humanidade” (Sens et non-sens, p.125).

A atualidade dessa análise é evidente por si mesma: nosso conceito de democracia há tempos “caminha mal das pernas”, com uma breve “vida útil”! Da ágora grega aos palanques eleitorais, sob o filtro midiático, tudo leva a crer que permanecemos, ainda, vegetando sob a sombra do moralismo político, da mentira eletrônica, da sedução demagógica.

Se há uma lição a ser extraída da lógica funcional da moral democrática é a de que, na verdade, marcha um outro atentado mais sutil, desencadeador de todos os demais: a afirmação etnocêntrica do mundo e sua lógica econômica. É essa razão para além de todas as razões que preside e patrocina escancaradamente a indústria bélica, chegando a orientar, inclusive, a sensacionalista agenda das inúmeras convenções e encontros (G8, G20...).

Trata-se, aqui, daquela mesma lógica interna que, engenhosamente, dirige a barbárie atual e contínua, que, como diz Merleau-Ponty, “se desvia em relação às exigências permanentes dos homens” (Humanisme et terreur, p. 166). Nunca antes, na história, “terrorismo” e “democracia” andaram de mãos dadas tão juntas: “diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és”...




*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 459, página 7, 09/01/2009.

Literatura e formação profissional: possibilidades de humanização

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


O que é literatura? Para que serve? Tais questões percorrem, corriqueiramente, salas de aula. Em uma sociedade que privilegia o capital, a humanização é algo secundário (quando muito!); e como a literatura caracteriza-se pela humanização, relega-se a ela minimizada – ou quase nula – importância. Por que, então, estudar e lecionar literatura?

Na obra Educação e emancipação Theodor Adorno explana que é necessário que toda discussão pedagógica leve em consideração a exigência primeira de que a injustificável monstruosidade de Auschwitz (campos de concentração localizados no sul da Polônia, utilizado por nazistas para exterminar seres humanos) não se repita, posto dirigir-se toda educação contra qualquer tipo de barbárie. No entanto, a consciência existente em relação a esta exigência é pouca, colaborando-se assim para a possibilidade de que o barbarismo se repita, consideremos a chacina no Instituto Politécnico da Virgínia ocorrida nessa semana, na qual um estudante provocou a morte de trinta e três pessoas, incluindo a sua.

Com a tendência de achar que nossos direitos, anseios, necessidades são mais urgentes que as do outro, esquecemos que o que é fundamental para nós é também indispensável ao próximo. Então, quando “evocamos bandeiras” em prol de uma formação íntegra – prevendo formação técnica e humana – será que lembramos que nosso aluno deve ter acesso ao mesmo?

É preciso ter consciência de que formação íntegra requer esforço e muito sofrimento. Se algumas pessoas não têm disposição para ter a completude dessa formação, pois necessita tempo, paciência e dedicação verdadeira, não deveriam ensinar, já que parte do conteúdo transmitido ficará guardado, inclusive temas e assuntos mal formulados. Há que se ter extremo cuidado ao formar opiniões, pois tornamo-nos responsáveis por uma formação intelectual, a qual poderá ser precária ou não.

Adorno afirma que a crise da formação cultural não se pode prender somente à pedagogia ou ser objeto exclusivo da sociologia, mas deve perpassar todas as esferas teóricas contemplando um debate sério. Para o teórico a formação cultural se converteu em uma semiformação socializada, na presença constante do espírito alienado que é símbolo de uma consciência que renunciou à autodeterminação, a qual se prende, de maneira obstinada, a elementos culturais aprovados. Apesar de toda ilustração e de toda informação que se difunde (e até mesmo com sua ajuda) a semiformação passou a ser a forma dominante da consciência atual, o que exige uma teoria abrangente.

Diante de tal panorama, de uma semiformação socializada a qual encobre por meio de ideologias a realidade precária da formação, o que fazer? Ao expor que “o conhecimento dos abusos sociais da semicultura confirma que não é possível mudar isoladamente o que é produzido e reproduzido por situações objetivas dadas que mantêm impotente a esfera da consciência” o sociólogo e filósofo frankfurtiano Theodor Adorno alerta-nos sobre a necessidade da coletividade. Não uma coletividade alienada, mas consciente e auto-reflexiva; e ele alerta: “a única possibilidade de sobrevivência que resta à cultura é a auto-reflexão crítica sobre a semiformação, em que necessariamente se converteu”. Assim, o resgate cultural é validado como fonte indispensável à formação plena, e a cultura engloba algo particularmente direcionada aos estudantes da Literatura. Mas o que é a Literatura? Para que serve?

Para o crítico literário Antonio Candido a Literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante. Ao sairmos da realidade (para saborear e vivenciar uma obra literária) e mergulharmos na ficção, temos a possibilidade de nos humanizar no sentido pleno definido pelo grande mestre: “[...] humanização - processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o sentido da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor”

O papel humanizador da literatura impõe-nos uma indagação como lâmina cortante: como ser um bom professor de literatura diante da tarefa tão especial que é disseminar a humanização através dela? Ou devemos nos contentar com a simples função de indicadores de catálogos literários?

A educação ou a formação num sentido amplo, via de regra, não é mais o objetivo primeiro das instituições (atualmente não cabe mais a diferenciação entre universidades particulares e públicas – a maioria destas também se rendeu à lógica do mercado quando se mostra condescendente à formação medíocre) e o conhecimento submete-se às regras do capitalismo regido pelo neoliberalismo. O conhecimento, não é mais o sujeito da educação, este é o capital. O capitalismo reduz as políticas educacionais aos mecanismos econômicos; a economia às finanças; as finanças como jogo de mercado; e o mercado não é ditado pelo profissional que detém o conhecimento, ao contrário, ele é submetido a ele.

Os professores encontram muitas dificuldades pelo caminho, pois sua profissão lhes nega (além do retorno financeiro) a separação entre o trabalho objetivo e o plano pessoal, já que se objeto de trabalho é o ser humano, o que torna difícil esse tipo de afastamento. É necessário vencer tabus que cercam a formação do professor a fim de que se resgate o valor a verdadeira intenção de formar-se em licenciatura, que é a de possibilitar uma formação crítica e cultural aos alunos, destacando em especial o professor de Literatura.

Para responder as proposições iniciais – o que é e para que serve a Literatura – aproveito as sábias palavras de Marilena Chauí, filósofa, professora, leitora assídua de literatura, expondo a utilidade da filosofia, estendida aqui à Literatura: “Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes”. Privilegiando a utilidade destacada por Chauí, nos encontraremos, quinzenalmente, para discutir e falar sobre literatura.





Dicas de leitura:

  1. Educação após Auschwitz” e “Teoria da semicultura”, do autor Theodor Adorno, disponível no site http://planeta.clix.pt/adorno
  2. Convite à filosofia, Marilena Chauí, Editora Ática.
  3. “O direito à literatura”, Antonio Candido, capítulo do livro Direitos Humanos e Literatura de Antônio Carlos Ribeiro Fester.

*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 373, página 11, 20/04/2007.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Quando a Treva é Branca

Fabio Alexandre Spanhol, Mestre em Ciência da Computação pela UFSC, Bacharel em Informática pela Unioeste e cinéfilo.


Se puderes olhar, vê. Se podes ver, repara.



O arquiteto brasileiro que se tornou cineasta, Fernando Meirelles, reconhecido por suas obras marcadas pelo tom de contestação política e temas sociais como “Cidade de Deus” e “O Jardineiro Fiel”, trouxe para o cinema “Ensaio sobre a Cegueira” (Blindness, Canadá/Brasil/Japão, 2008), adaptação do romance homônimo de José Saramago (1922-*). O filme estreou no Brasil em setembro do ano passado e neste janeiro está sendo lançado em DVD.

Saramago já ganhou o Prêmio Camões, o mais notório prêmio literário da língua portuguesa e é o primeiro escritor nesse idioma a receber o Prêmio Nobel de Literatura (1998). O crítico Harold Bloom caracterizou o escritor português como “o mais talentoso romancista vivo nos dias de hoje”, sendo "o Mestre", como é evocado pelo crítico, "um dos últimos titãs de um gênero literário que se está desvanecendo".

Uma das obras mais famosas de Saramago, “Ensaio sobre a Cegueira” (1995), juntamente com os romances “Todos os Nomes” (1997), “A Caverna” (2001), “O Homem Duplicado” (2002), “Ensaio Sobre a Lucidez” (2004) e “As Intermitências da Morte” (2005) pertence à fase do autor dedicada a perscrutar de forma crítica os rumos que toma a sociedade contemporânea. A localização geográfica e o momento histórico desses romances não são mais definidos, diluindo-se em uma abordagem universal que desdenha os personagens históricos ‘oficiais’ e concentra-se nas representativas alegorias.

Sempre negando a autorização para uma adaptação cinematográfica da citada obra, Saramago retrucava que “o cinema destrói a imaginação”. Contudo, parece ter encontrado no talentoso Meirelles um artesão capaz de apresentar uma interpretação a altura do texto escrito.

O roteiro adaptado por Don McKellar, que também atua como "o Ladrão" (como já mencionado, os personagens não tem nomes, mas são alegorias), procura preservar os elementos essenciais do romance. O enredo foca uma inexplicável, inesperada e incurável epidemia de “cegueira branca” que inicia com um homem ao volante do seu carro em pleno trânsito, o “primeiro cego”, vivido por Yusuke Iseya. As pessoas com quem ele tem contato, como o “ladrão”, a esposa (Yoshino Kimura), o “médico” (Mark Ruffalo) e outros também ficam cegos. Rapidamente o mal se alastra na grande metrópole, levando o governo a isolar os vitimados para evitar o contágio dos cidadãos não ‘infectados’.

Estabelece-se uma metáfora social. Grande parte do tempo o expectador acompanha a degradação física e moral crescente do grupo inicial de pessoas que perderam a visão, sendo mantidas encarceradas, com uma leva de outros enfermos, em uma espécie “manicômio de quarentena”. Junto deles a mulher do médico (interpretada brilhantemente por Julianne Moore), a única pessoa que não ficou cega e se auto-impõe a dura missão de cuidar do marido e dos outros de sua ala.

Sem carcereiros ou qualquer controle, além do confinamento imposto e o fornecimento externo de comida racionada, o local torna-se o palco dantesco de todo tipo de extremismo que o humano pode perpetrar contra seus semelhantes quando não há ordem. Somos confrontados com excrementos e lixo que se avolumam incessantemente por todo lado, imundície corporal, racismo, mortos abandonados enterrados no pátio, estupro coletivo e tortura psicológica. Nesse aspecto, nota-se que o livro é mais grotesco, escatológico e o filme de certa forma atenua esse tom, preferindo acertadamente a sugestão ao explícito.

Aos poucos todos, menos a “mulher do médico”, estão tomados pela treva branca. As pessoas são reduzidas a seres lutando por seus instintos primários até um desmoronar efetivo de toda a estrutura social. Todos estes personagens sem nome terão testadas suas concepções de moral, dignidade e até humanidade.

A esmerada produção impressiona ora pela crueza, ora pelo intimismo, apresentada pela inspirada fotografia de César Charlone. O já habitual colaborador do diretor, em vários efeitos de superexposição, foco incerto, reflexos e dessaturação, remete a brancura da cegueira do “mar de leite” descrita no livro, criando uma atmosfera confusa e sufocante. Os interiores são sempre claustrofóbicos e opressivos. O exterior, focado no espaço da metrópole, formada por uma miscelânea de imagens de São Paulo, Osasco e Montevidéu, é sujo e escuro, polvilhado por hordas errantes de cegos.

O filme e a obra literária lembram-nos que vivemos cegados por nossa própria visão. Visão essa permeada de preconceitos (de etnia, gênero, religião, opção sexual) que nos barram em uma tola superficialidade, impedindo que vejamos a real dimensão das pessoas com as quais convivemos. Na nossa visão social deturpada já somos cegos e a “cegueira branca” clareia nossas percepções. Uma nova humanidade surge quando, na falha dos sentidos básicos, somos obrigados a confiar profundamente uns nos outros. Viver é um exercício contínuo de tolerância. Não basta olhar, tem que reparar o outro.

Dicas de Leitura:

  1. José Saramago. Ensaio Sobre a Cegueira. Editora Companhia das Letras, 1995.
  2. José Saramago. As Intermitências da Morte. Editora Companhia das Letras, 2005.
  3. José Saramago. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Editora Companhia das Letras, 1991.

Dicas de Hipermídia:

*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 462, página 7, 30/01/2009.



O Curioso Caso de Benjamin Button

Fabio Alexandre Spanhol, Mestre em Ciência da Computação pela UFSC, Bacharel em Informática pela Unioeste e cinéfilo.


A vida não é medida em minutos, mas em momentos.


Estreou nos cinemas brasileiros, no último dia 16 de janeiro, o “O Curioso Caso de Benjamin Button” (The Curious Case of Benjamin Button, EUA, 2008), dirigido por David Fincher (responsável dentre outros por “Se7en - Os Sete Pecados Capitais”, “Clube da Luta”, “Zodíaco”) e estrelado por Brad Pitt e Cate Blanchett.

O filme foi escrito pelos roteiristas Eric Roth (“Forrest Gump”, “Ali”, “Munich”) e Robin Swicord, inspirado no conto homônimo do escritor Francis Scott Fitzgerald (1896-1940), publicado em 1922. Tal conto, por sua vez, teria sido inspirado em uma citação do escritor Mark Twain: “A vida seria infinitamente mais feliz se pudéssemos nascer aos 80 anos e gradualmente chegar aos 18”. Várias mudanças foram feitas por Roth e Swicord em relação ao conto original, de lugares, caracterizações de personagens e mesmo o período histórico no qual se passa a história, que fora atualizado. Mas certamente as mudanças evocam um sensível ganho e o filme transcende as pretensões iniciais do conto de Fitzgerald.

Na produção, Brad Pitt interpreta o personagem título, nascido em circunstâncias incomuns”: como um bebê totalmente velho, aos oitenta anos, acometido por doenças típicas da velhice e às portas da morte. Contudo, caminhando em direção oposta dessa porta, rejuvenesce a cada momento que passa, invertendo o ciclo natural comungado por todas as criaturas vivas. Impossibilitado de interromper a passagem do tempo, Benjamin obriga-se a seguir sua jornada de descobertas externas e principalmente interiores, conhecendo lugares e amargamente acompanhar as pessoas que ama envelhecerem e partirem.

Claramente a estrutura narrativa, permeada de passagens históricas vistas pelos olhos dos protagonistas, remete a Forrest Gump, outro trabalho do roteirista Eric Roth, que novamente mescla drama, aventuras e leves pitadas de humor.

A trama apresenta como cenário principal a cidade de Nova Orleans. Inicia-se em um hospital no momento da chegada do furacão Katrina e mostra Daisy (interpretada por Cate Blanchett), uma paciente idosa em seu leito terminal, rememorando seu passado para a filha Caroline (Julia Ormond) enquanto esta lê o velho diário de Benjamin Button. Vários e longos flashbacks (rememorações, lembranças) começam a alternar-se com o tempo presente no quarto de hospital, retornando ao final da Primeira Grande Guerra, na casa de um rico empresário, no exato momento do falecimento de sua esposa com o nascimento do filho. O recém-nascido Benjamin, devido à bizarra aparência, é abandonado pelo próprio e perplexo pai na escadaria de uma pensão-asilo dirigida pela negra Queenie (Taraji P. Henson), que acolhe e passa a criar o estranho bebê.

É tocante acompanhar o pequeno e enrugado Benjamin, assistido sempre por sua carinhosa mãe adotiva Queenie, aprendendo a sentar-se, a balbuciar as primeiras palavras, a andar sem o apoio das muletas e interagir com seus colegas idosos do asilo. Todo o contato que Benjamin tem com o exterior é filtrado por sua alma infantil aprisionada em um corpo senil, tolhendo seu ímpeto pueril.

Ainda seguindo a estrutura de Forrest Gump, o protagonista é confrontado com um “amor impossível”: Daisy. No asilo, a criança Daisy visitando nas férias sua avó, faz amizade com o “velho” Benjamin. Os encontros passariam a repetir-se nas férias dos anos seguintes, aumentando a proximidade dos dois. Próximos, mas separados pelo aparente hiato de idade, a menina Daisy envelhece enquanto Benjamin rejuvenesce. Benjamin finalmente rejuvenesce a ponto de sair para explorar o mundo e o faz a bordo de um barco rebocador. Passados lugares longínquos e o tempo, os dois se reencontram: ela vinte anos mais velha, ele vinte anos mais jovem. No seu ato final, temos o amor e o sacrifício de Benjamin, lidando com a dificuldade de amar uma bela mulher deteriorando-se com o passar do tempo enquanto ele fica cada vez mais jovem.

Viajando para diferentes localizações geográficas e períodos históricos, o filme compõe uma fábula sobre a condição humana, a passagem do tempo e a finitude, juventude e senilidade, conquistas e perdas, o amor e seus sacrifícios, decepções e auto-descobertas. Enfim, uma bela metáfora que representa o grande e efêmero mosaico que é nossa peregrinação neste mundo.

Dicas de Leitura:

    1. F. Scott Fitzgerald. Suave é a Noite. Editora Bestbolso, 2008.
    2. F. Scott Fitzgerald. Contos. Editora Casa Jorge Editorial, 2001. (Nesta coletânea há o conto original)

*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 461, página 7, 23/01/2009.