quarta-feira, 24 de junho de 2009

Matando para libertar “Teresa”

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


José Rubem Fonseca nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 1925. Antes de ser consagrado um dos principais escritores do país pela crítica e pelo público, ganhando diversos prêmios nacionais e internacionais, Rubem Fonseca foi comissário de polícia. É provável que dessa experiência venha um vasto catálogo de casos e personagens do submundo do crime, mas se fossem meros relatos da violência urbana, não seria literatura e sim boletim de ocorrência, ou nota policial jornalística. O fato de conseguir enxergar as tragédias humanas, dando a elas uma densidade única, diz respeito à sensibilidade e à arte construtiva das palavras e da imaginação fonsequiana.

Sua escrita agressiva se caracteriza pela utilização de frases curtas, cortes abruptos e diálogos ríspidos, e algumas particularidades repugnantes, como a escatologia, por exemplo. Com preciso domínio sobre o ofício, o escritor é capaz de criar as situações mais inesperadas, fazendo parecer que nada de extraordinário esteja acontecendo. É assim o enredo do conto “Teresa”.

Dividido em 27 narrativas breves, o livro “Ela e outras mulheres”, lançado em 2006 pela editora Companhia das Letras, apresenta todos os elementos da ficção fonsequiana que tanto atraem os leitores brasileiros, sobretudo os mais jovens. Batizados com nomes de mulheres e seguindo a ordem do nosso alfabeto, os contos estão permeados de violência, sexo, desejo, ambição, pobreza, discórdia, miséria e luxo.

Os títulos dos 27 contos são nomes próprios femininos, em ordem alfabética, de “Alice” a “Zezé” e enfocam a violência urbana em narrativas curtas e rápidas. Uma característica significativa é a falta de aspas e travessões nos diálogos. Fonseca não distingue as falas dos personagens, detalhe que se por um lado exige mais atenção do leitor.

Inicialmente o conto “Teresa” aponta para uma possível falta de caráter da personagem feminina. A idoneidade de dona Teresa é colocada sob suspeita pelos dois filhos do doutor Gumercindo. Querendo o apartamento ocupado pelo pai e sua segunda esposa, os filhos assim expressam ao falar da situação: “Um apartamento desse tamanho e só moram lá o velho e aquela vigarista, disse um deles. A filha-da-puta só quer o dinheiro do velho, respondeu o outro, mas ele não morre, noventa anos e não morre, ele deve estar muito decepcionada, já atura o velho há cinco anos.”

Quem narra a história é José, vizinho do casal de anciãos. Após ouvir esse comentário, ele fica mais atento às atitudes de Teresa e observa: “Um dia depois de ouvir a conversa dos filhos no elevador, desci com o doutor Gumercindo e dona Teresa. Sem que percebessem, olhei dona Teresa atentamente. Ela cuidava do doutor Gumercindo com carinho e desvelo, nenhuma outra mulher do prédio tratava o marido daquela maneira.”

José se descreve despachante. Faz viagens para despachar. No retorno de uma das viagens, ele percebe que os dois filhos do doutor ocupam o apartamento, junto com duas mulheres “com caras de putas”, segundo o narrador. Ao perguntar para o porteiro fica sabendo que Gumercindo morreu e que dona Teresa pouco sai de casa. Ele, então, investiga o fato. Barrado pela empregada dos filhos, José não consegue ver dona Teresa. Com astúcia, volta ao apartamento dois dias depois, na folga da empregada e assim consegue adentrar o imóvel: “Um dos grandões entreabriu a porta. Vim visitar dona Teresa, eu disse. Ela não pode receber visitas, ele respondeu, irritado, dá o fora. Começou a fechar a porta, mas não deixei. Abre essa merda, eu disse, encostando a pistola nos cornos dele.”

Tal atitude junto à necessidade de deslocamento para despachar, alerta os leitores de que o “despacho” pode não ser algo relativo a veículo, criando uma tensão. Descobre-se, ao final, que José é um assassino de aluguel, que, aliás, freqüenta outras tramas, mostrando muita habilidade em casos difíceis de “despacho”. No conto “Teresa”, ele será uma espécie de salvador, pois mata os filhos de Gumercindo, liberta dona Teresa amarrada em uma cama de hospital, expulsa as “putas” do apartamento, devolvendo-o à anciã. Ela o agradece com um beijo na mão e diz que ele é um santo. Sozinho, porém, ele se define: “Um santo porra nenhuma. Sou um assassino profissional, mato por dinheiro. Nem sempre.”, e o conto se encerra.

Criticado por boa parte da impressa especializada por insistir em histórias de violência e sexo, Rubem Fonseca parece não se importar muito com tais opiniões. A prosa de autor pode ser vista como uma espécie de espelho que reflete a realidade por meio da literatura. Mais do que dialogar com os leitores sobre temas que incomodam, sua escrita coloca o ser humano no centro de todas as coisas, revelando a complexidade de uma existência quase sempre sem sentido. Exemplo claro desse flerte existencial, que quase sempre aparece velado por diálogos e frase banais, é a atitude libertária do matador profissional Zé, do conto “Teresa”. O enredo é curtinho e vale a pena ser lido na íntegra!

Um mineiro muito carioca

Geórgia Pereira, Acadêmica de Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina - UEL.

Mineiro, bastante reservado como muitos de sua terra, e avesso à exposição pública, Rubem Fonseca, 81 anos, é um dos importantes nomes que compõem a produção literária no Brasil. Ele construiu ao longo de sua carreira, romances e contos que lhe caracterizam pela abordagem de temas densos, com linguagem sintética e ágil.

O autor está inserido na esfera das produções contemporâneas, que datam da década de 60. O marco de sua produção aconteceu com o livro de contos Feliz Ano Novo (1975), alvo de críticas e motivo de censura. Desde então, Fonseca apresentou estilo conciso e direto, imprimindo em seus textos, temáticas policiais e violentas, com assassinos, prostitutas e amantes.

Além do tom nitidamente policialesco, em que há geralmente um crime ou um mistério a ser desvendado, seus textos podem ser vistos como uma paródia do gênero policial tradicional, visto que os crimes atuam apenas como um disfarce de suas críticas a uma sociedade opressora do indivíduo.

Romancista e contista, Rubem imprime em suas obras um ritmo intenso na percepção dos acontecimentos, mas deixa a cargo de quem lê, a completude e a interpretação do enredo. Traz uma narrativa “curta e grossa” repleta de marcas de aspereza, retratando a realidade do subúrbio carioca. Sua literatura é crua, desnuda a ação humana sem nenhum pudor.

Mineiro de Juiz de Fora, José Rubem Fonseca nasceu no dia 11 de maio de 1975. Aos 8 anos foi para o Rio de Janeiro onde estudou Direito na antiga Faculdade de Direito da Universidade do Brasil. Depois de formado, iniciou sua carreira na polícia carioca, como comissário do 16º distrito. De acordo com alguns relatos, Fonseca se tornou policial pelos mesmos motivos que o comissário Mattos cita em "Agosto", romance do autor: "No meu caso, fora simplesmente a incapacidade de arranjar um emprego melhor. Depois de três anos advogando para criminosos pobres, sem ganhar dinheiro para pagar o aluguel do escritório, sem dinheiro para casar, surgira aquela oportunidade de trabalhar vinte e quatro horas e ter setenta e duas horas de folga".

Rubem Fonseca teve atuação de destaque no grupamento policial do Rio de Janeiro entre os anos de 1952 e 58, ficando mais tempo no cargo de policial de gabinete, responsável pelas relações públicas do setor. Muitas das experiências vividas durante este período estão registradas na obra “Aluno brilhante da Escola de Polícia”. Em 1953, Fonseca foi selecionado para fazer cursos de aperfeiçoamento nos Estados Unidos, local onde estudou administração na cidade de Nova York e posteriormente, comunicação em Boston. O mineiro deixou a polícia em 1958, quando foi exonerado do cargo e ingressou na empresa Light, atuando ali durante a década de 60. Com a saída da vida dos negócios, seu novo destino foi a literatura.

Uma das novas correntes inauguradas por Fonseca foi a que o crítico literário Alfredo Bosi classificou como “brutalista”. Bosi defende que não é uma questão de estilo, mas sim o retrato da sociedade repressora da época, já que tal significado foi reconhecido durante a ditadura militar brasileira. Com o término da ditadura, Fonseca conservou essa característica para fazer o retrato mundano da violência na sociedade carioca.

Já Antonio Candido faz uso do termo “realismo feroz” na tentativa de mostrar o traço marcante no trato com o texto e com os temas retratados nas suas produções. Escrever sobre as angústias de uma sociedade essencialmente urbana – e ser identificado por essa característica – é uma opção literária feita pelo escritor

As obras de destaque são seus livros de contos como Os primeiros (1963), A coleira do cão (1965), Lúcia MacCartney (1967), Feliz ano novo (1975) e O cobrador (1979). Dentre os romances, sobressaem O caso Morel (1973), A grande arte (1983), Bufo e Spallanzani (1986) e Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (1988). Uma de suas últimas obras é intitulada “Ela e outras mulheres” que reúne 27 contos, todos com nomes próprios femininos, organizados em ordem alfabética. Tal obra foi vencedora do Prêmio Academia Brasileira de Ficção, Romance, Teatro e Conto em 2007. Além da produção de contos e romances, o autor também contribui para a produção cinematográfica, produzindo roteiros para filmes como “O Homem do ano” dirigido por José Henrique Fonseca, filho do autor, “Bufo & Spallanzani” e Relatório de um Homem Casado”, ambos dirigidos por Flávio Tambelini e “A Grande Arte”, dirigido por Walter Salles Jr.

Mais do que dialogar com os leitores sobre temas que incomodam, a escrita fonsequiana coloca o ser humano no centro de todas as coisas, revelando a complexidade de uma existência quase sempre sem sentido.

"Penélope" tece a própria morte

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


Conta a lenda grega que durante a ausência do marido, Penélope – esposa de Ulisses e mãe de Telêmaco - foi pedida em casamento por diversos pretendentes, prometendo escolher um deles logo que concluísse a peça de bordado que estava tecendo. Acontece que todas as noites ela desfazia o trabalho realizado durante o dia, adiando dessa maneira, indefinidamente, a decisão que os candidatos à sua mão aguardavam ansiosos. E se assim procedia era porque, quando seu esposo partiu para a guerra de Tróia, confiou-lhe a guarda do reino da Ítaca, pedindo-lhe que caso não retornasse, ela não se casasse enquanto Telêmaco fosse jovem.

É com base nessa lenda que Dalton Trevisan escreve o conto “Penélope”, incluso na obra “Novelas nada exemplares”. O enredo gira em torno de um casal de idosos que tem sua vida rotineira abalada por uma série de cartas anônimas que resultam no ciúme paranóico do marido e no suicídio da mulher. O texto é uma intertextualidade com a personagem Penélope, não só pelo nome do conto e da personagem, mas, sobretudo, pela simbologia da fiação. O autor vale-se do mito de Penélope para reinventar a história por meio da inversão irônica e criando uma nova situação condizente com os rumos da sociedade e do homem moderno.

Apesar de Trevisan mostrar o lado funesto e inseguro do ser humano, o autor o faz de uma maneira sutil, pois ele não aponta, não culpa e nem defende o marido por seu ciúme doentio, ele limita-se a apresentá-lo. A apresentação “sem juízo de valor” do drama do marido chega ao leitor pela voz de um narrador onisciente, que penetra na consciência da personagem de tal modo que, em certos momentos, não fica evidente se é a voz do narrador ou o pensamento do marido: “Sábado seguinte, durante o passeio, lhe ocorre: só ele recebe a carta? Pode ser engano, não tem direção. Ao menos citasse nome, data, um lugar.”

A narrativa apresenta o processo de construção do ciúme que vai do fluxo de consciência e da imaginação do marido aos acontecimentos concretos: a série de cartas anônimas deixadas na porta do casal, todos os sábados, enquanto seguiam para o passeio costumeiro. Entre a evidência das cartas e a incerteza da traição, o narrador acompanha o conflito do marido e penetra em seu inconsciente afetado pelo ciúme, mas deixa a mulher numa redoma de mistério.

Os pensamentos de Penélope não são conhecidos já que não é narrado o ponto de vista da mulher. Na maioria das vezes, ela aparece tricotando, com poucas falas durante o enredo. São os ciúmes do marido que indagam as atitudes da esposa: “Voltando as folhas, surpreendia o rosto debruçado sobre as agulhas. Toalhinha difícil, trabalhada havia meses. Recordou a lenda de Penélope, que desfazia de noite, à luz do archote, as linhas acabadas durante o dia e, à espera do marido, assim ganhava tempo de seus pretendentes. Calou-se no meio da história: ao marido ausente enganara Penélope? Para quem a mortalha que trançava? Continuou a estalar as agulhas após o regresso de Ulisses?”

O conto é análogo à lenda pelas associações entre as duas personagens que se chamam Penélope e igualmente aparecem relacionadas às fiandeiras, mas se distanciam pela oposição crucial entre vida e morte. Se no mito o que está em jogo é o amor que leva à vida conjugal, no conto é a morte e a desconfiança que provoca a fatal separação do casal.

O ato de fiar representa um eterno retorno pelo processo de tecer e desfazer o trabalho começado e interminável. A escolha de Penélope por desfazer à noite o que fez durante o dia garante-lhe tempo para fabricar suas próprias defesas contra o destino imposto pelos outros. Também no conto, Penélope é uma tecelã e decide o momento em que o trabalho ficará pronto em que cortará os fios que a prendem à vida, determinando a ocasião de sua morte.

Porém, ao contrário do mito, Penélope não suporta a longa espera, o tempo em que o marido “retornaria” a si, superando o ciúme e reconhecendo sua fidelidade. Antes, decide por fim ao drama, sendo senhora de seu destino ao cortar os fios que a ligam à vida, embora ainda dê um tempo ao marido, pelo processo de fazer e desfazer a toalhinha. Ao fazer isso, ela torna-se uma espécie de fiandeira que tece, mede e corta seu destino. E é por ser uma fiandeira que ela embaralha a vida do marido, pois ele estará condenado ao remorso e à culpa pelo suicídio da esposa, já que as cartas prosseguem após a morte dela: “‘Fui justo’, repetia, ‘fui justo’ –, com mão firme girou a chave. Abriu a porta, pisou na carta e, sentando-se na poltrona, lia o jornal em voz alta para não ouvir os gritos do silêncio.

Assim como no mito, Penélope tece/borda uma toalhinha, fazendo e desfazendo pontos, num trabalho que exige tempo e paciência. Contudo, se no mito, ao bordar a peça “interminável” Penélope perpetua o amor ao marido que está longe, no conto, Penélope tece, perto do marido, a mortalha para si mesma e da separação eterna: Entrou na sala, viu a toalhinha na mesa – a toalhinha de tricô. Penélope havia concluído a obra, era a própria mortalha que tecia”.

O conto de Dalton Trevisan faz uma inversão, resgatando e se afastando da lenda grega, ao propor um mito às avessas, em que se observa, em vez da fortaleza conjugal, a fragilidade dos laços matrimoniais e do ser humano.

Dalton Trevisan – o “vampiro de Curitiba”

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


Flagrado no último mês de agosto andando pelas ruas curitibanas, Dalton Trevisan aparenta boa saúde aos 83 anos idade. O "vampiro de Curitiba”, apelido desde 1965 – data da publicação do livro homônimo, não concede entrevistas há quase 30 anos. A distância da mídia, porém, não é senão uma escolha, já que Dalton mantém-se saudável, resultado de caminhadas diárias e alimentação disciplinada, dizem os amigos. O escritor dispensa carne vermelha, ironia no caso de um autor tratado como "vampiro". Prefere saladas, frutas, grãos e alguma carne branca. Cardápio conciso para ajudar a alimentar seus contos.

Dalton Jérson Trevisan, curitibano nascido em 1925, sempre foi avesso à imprensa, criando uma atmosfera de mistério em torno de seu nome. Não dá entrevistas nem gosta de ser fotografado. Assina apenas "D. Trevis" e não recebe a visita de estranhos. "Ele não faz isso por mal. O Dalton gosta de ficar na dele pois é contra a autopromoção", diz o diretor teatral João Luiz Fiani, responsável por cinco montagens teatrais de contos de Trevisan. Além da aversão à imprensa, Dalton também costuma mudar seu itinerário pelas ruas de Curitiba para não ser reconhecido durante caminhadas, compras e visitas a cafés e livrarias.

Observador e escritor incansável, fidelíssimo ao conto, elabora até a exaustão e com economia absoluta, “chuvinha renitente e criadeira”, suas histórias. Dalton Trevisan coloca em seus enredos, a capital paranaense e as gentes curitibanas ("curitibocas", vergasta-as com chibata impiedosa), com independência solene e temperamento singular. Em seus contos, realiza a construção e a dissecação da supra-realidade de luas, crianças, amantes, velhos, cachorros e vampiros. E polaquinhas, como em seu único romance publicado.

Quando era estudante de Direito (cursou a graduação na atual Universidade Federal do Paraná), Trevisan costumava lançar seus contos em modestos folhetos. Em 1945 lançou o livro "Sonata ao Luar" e, no ano seguinte, publicou "Sete Anos de Pastor". Mas ele renega os dois e não os inclui na sua bibliografia.

Ainda na década de 1940 (1946 a 1948) editou a revista "Joaquim" por dois anos. O nome, segundo ele, era "uma homenagem a todos os Joaquins do Brasil". A publicação tornou-se porta-voz de uma geração de escritores, críticos e poetas. Reunia ensaios assinados por Antonio Cândido, Mario de Andrade e Otto Maria Carpeaux e poemas até então inéditos, como "O Caso do Vestido", de Carlos Drummond de Andrade. A revista também trazia traduções de Joyce, Proust, Kafka, Sartre e Gide e era ilustrada por artistas como Poty, Di Cavalcanti e Heitor dos Prazeres.

Em 2003, Dalton foi agraciado com o Prêmio Telecom. Com a obra “Pico na veia” dividiu o primeiro lugar com o jornalista brasileiro Bernardo Carvalho. O livro é uma coletânea de duzentos contos curtos que apresentam os temas recorrentes de Dalton Trevisan: os desastres do amor, os infernos particulares, a guerra dos sexos, cenas da vida cotidiana e da condição humana. Um retrato da realidade do Brasil de hoje construído com ironia e humor.

Dalton Trevisan mais uma vez deu uma lição de estética literária com um bilhete curto, direto e definitivo, assim como o estilo de seus contos. Foi na entrega do Prêmio Portugal Telecom de Literatura 2007 em que Trevisan ficou com o segundo lugar e recebeu R$ 35 mil. O primeiro prêmio foi para angolano Gonçalo Tavares, com "Jerusalém" (R$ 100 mil para ele). A atração da noite e o que realmente prevaleceu foi a seguinte mensagem enviada por Dalton: "Só a obra interessa. O autor não vale o personagem. O conto é sempre melhor que o contista. Vampiro sim, de almas. Espião de corações solitários, escorpião de bote armado. Eis o contista. Só invente o vampiro que exista. Com sorte, você adivinha o que não sabe. Para escrever mil novos contos, a vida inteira é curta. Uma história nunca termina. Ela continua depois de você. Um escritor nunca se realiza. A obra é sempre inferior aos sonhos. Fazendo as contas percebe que negou o sonho, traiu a obra, cambiou a vida por nada. O melhor conto só se escreve com tua mão torta, teu avesso, teu coração danado. Todas as histórias, a mesma história, uma nova história. O conto não tem mais fim senão começo. Quem me dera o estilo do suicida em seu último bilhete.”

Ainda refletindo palavras do “vampiro de Curitiba”, escutemos atrás das portas para aprimorarmos nossa vivência: "O que não me contam, eu escuto atrás das portas. O que não sei, adivinho e, com sorte, você adivinha sempre o que, cedo ou tarde, acaba acontecendo."

“Escrevo para me manter viva” - Clarice Lispector

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


A professora de literatura canadense, Claire Varin, realizou estudos sobre a vida e a obra de Clarice Lispector e escreveu dois livros sobre a autora. Claire afirma que só é possível ler Clarice tomando seu lugar: sendo Clarice. "Não há outro caminho", garante ela. Para corroborar sua tese, Claire cita um trecho da crônica “A descoberta do mundo” em que a escritora diz: "O personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor, é o escritor."

Clarice nasceu na Ucrânia, em 10 de dezembro de 1920, em um pequeno vilarejo chamado Tchelchenik. Não se chamava Clarice, mas Haia Lispector. Era a terceira filha de Pinkouss e de Mania Lispector. Em fevereiro de 1922 toda a família vai para a Alemanha e, no porto de Hamburgo, embarcam no navio "Cuyaba" com destino ao Brasil. Chegam a Maceió em março desse ano, sendo recebidos por Zaina, irmã de Mania, e seu marido e primo José Rabin, que viabilizou a entrada da família no Brasil mediante uma "carta de chamada".

Por iniciativa de seu pai, à exceção de Tania - irmã, todos mudam de nome: o pai passa a se chamar Pedro; a mãe Mania, Marieta; a irmã Leia, Elisa; e Haia, Clarice. Pedro passa a trabalhar com Rabin, já um próspero comerciante. A mãe de Clarice morre quando ela tinha 10 anos. Inicia seus estudos na Faculdade Nacional de Direito, em 1939. Quatro anos mais tarde casa-se com o colega de faculdade, Maury Gurgel Valente e termina o curso de Direito. Seu marido, por concurso, ingressa na carreira diplomática.

Muda-se para Itália em 1944, em plena Segunda Guerra Mundial, onde o marido vai trabalhar. Já na saída do Brasil, Clarice mostra-se dividida entre a obrigação de acompanhar o marido e ter de deixar a família e os amigos. Quando chega à Itália, depois de um mês de viagem, escreve: "Na verdade não sei escrever cartas sobre viagens, na verdade nem mesmo sei viajar."

Em dezembro de 2007, em ocasião das homenagens aos 30 anos da morte de Clarice, Teresa Montero reuniu e publicou 120 cartas escritas pela escritora às irmãs. Inéditas, enviadas entre 1940 e 1957 para as irmãs Elisa Lispector e Tania Kaufmann, que então moravam no Rio de Janeiro. A maioria das cartas foi emitida por Clarice enquanto estava fora do país, acompanhando o marido diplomata. Segundo Montero, pela primeira vez é possível sondar, de maneira contínua, o dia-a-dia de Clarice: "Sabemos das suas dificuldades para publicar estando longe do Brasil, contando com a ajuda das irmãs. E também de suas idas a concertos, peças de teatro, museus, e ainda filmes que viu e escritores que a inspiraram, como Tolstói, Katherine Mansfield, Simone de Beauvoir, entre outros", conta Montero.

Mãe, Clarice Lispector divide seu tempo entre os filhos. Em 1948 nasce Pedro e em 1953, Paulo. Nasce, então, um complemento ao método de trabalho. Ela escreve com a máquina no colo, para cuidar dos filhos. Separa-se de Maury após 15 anos de casada e volta a morar no Brasil.

Um ano antes de sua morte, em 1977, o jornalista José Castello, do Jornal O Globo, entrevista Clarice:

J.C. "— Por que você escreve?”

C.L. "— Vou lhe responder com outra pergunta: — Por que você bebe água?"

J.C. "— Por que bebo água? Porque tenho sede."

C.L. "— Quer dizer que você bebe água para não morrer. Pois eu também: escrevo para me manter viva."

Nos muitos romances e contos, Clarice desenvolve narrativas que tratam da condição feminina, da dificuldade de relacionamento humano, da hipocrisia dos papéis socialmente definidos, da busca pelo “eu”. “Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas, continuarei a escrever”, afirmou certa vez Clarice.

Sua biobibliografia ganhou em 2008 uma nova contribuição. Foi lançada pela Imprensa Oficial, a fotobiografia da escritora Clarice Lispector organizada pela professora Nádia Batella Gotlib. O livro é composto por cerca de 800 imagens da vida da escritora, muitas delas inéditas, distribuídas em ordem cronológica, além de vários manuscritos compilados ao longo de mais de 650 páginas. Nela tem-se um pouco de Clarice que assim se define: “Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe ainda a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem um imaterial peso da solidão no meio de outros."

O contexto social da segunda geração modernista

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


O Modernismo representou uma ruptura profunda com os padrões artísticos da escola literária anterior, o Simbolismo. Inspirado pelas vanguardas européias no início do século XX, o Modernismo no Brasil inovou os temas e a linguagem das obras ao mesmo tempo em que afirmou nossa identidade. Sem idealizações, valorizou nossa cultura e denunciou nossas mazelas de modo contundente.

Dividido didaticamente em suas três gerações, o Modernismo brasileiro proporcionou novas perguntas e novas respostas para as grandes questões humanas. Produziu, também, algumas das melhores obras da nossa literatura, estimulado pelo contexto social turbulento. A primeira geração da poesia, a do nacionalismo crítico, a qual promovia a releitura do passado histórico do Brasil, é superada, e os autores da segunda geração passam-se dedicar à reflexão sobre o mundo contemporâneo, usando todos os recursos à disposição da criação poética, aproveitando as conquistas da primeira geração e outras ferramentas relacionadas à forma.

Pode-se dizer que durante certo tempo, a poesia das primeira e segunda gerações (de 1922 e 1930) conviveram. Não se trata, portanto, de uma sucessão brusca. A maioria dos poetas de 30 absorveria parte da experiência de 22: liberdade temática, gosto pela expressão atualizada ou inventiva, verso livre, anti-academicismo.

A poesia persegue a tarefa de purificação de meios e formas iniciada com a geração anterior, ampliando a temática na direção da inquietação filosófica e religiosa, com Vinícius de Moraes, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, ao tempo em que a prosa alargava a sua área de interesse para incluir preocupações novas de ordem política, social e econômica, humana e espiritual. Ao jocoso e ao irônico sucedeu a gravidade de espírito, a seriedade da alma, propósitos e meios. Uma geração grave, preocupada com o destino do homem e com as dores do mundo, pelos quais se considerava responsável, deu à época uma atividade excepcional.

A Segunda Guerra Mundial deixou como legado mais do que ruínas de cidades arrasadas por bombardeios. Ela obrigou a enfrentar a barbárie humana e a reconhecer que o preconceito e desejo desmedido pelo poder podem levar à perda de milhões de vidas. Em 1944, escreve Drummond: “Meus olhos são pequenos para ver / o mundo que se esvai em sujo e sangue”, expondo a reflexão sobre a perversidade de que o ser humano é capaz.

As bombas atômicas lançadas em agosto de 1945 pelos Estados Unidos contra as cidades japonesas de Nagasaki e Hiroxima, revelou a última fronteira da ética havia sido cruzada pela ciência: o ser humano havia descoberto uma forma eficiente de exterminar a própria raça. Assim, criou-se o contexto para que a arte assumisse uma perspectiva mais intimista e procurasse respostas para s muitas dúvidas existenciais desencadeadas por todo esse cenário de horror e de destruição.

A espiritualidade também vive um momento conflituoso, porque torna-se tão difícil compreender Deus – independentemente do nome que receba – quanto compreender a humanidade diante da cruel existência de bombas atômicas e campos de concentração. A análise do ser humano e de suas angústias, o desejo de compreender a relação entre o indivíduo e a sociedade da qual faz parte são os elementos recorrentes na poesia produzida na década de 1930 e 1940.

Enquanto a primeira geração modernista experimentou uma grande variedade de temas e de técnicas, a segunda é caracterizada por uma produção fortemente social. Assim o contexto sociopolítico define o foco para a poesia desse momento.

A publicação do livro “Alguma Poesia”, em 1930, de Carlos Drummond de Andrade, é considerada a referência do início da poesia da segunda geração do Modernismo brasileiro. Os críticos literários adotam o ano de 1945 como data do fim da poesia dessa geração, embora muitos dos escritores pertencentes a ela continuem a produzir.

Exposto ao pavor de duas grandes guerras, o ser humano vive tempos sombrios até meados do século XX e as indagações são latentes: o que significa estar no mundo? A esperança deve ser depositada nos indivíduos ou projetada na espiritualidade? Refletir sobre o sentido de estar no mundo é a proposta que define o projeto literário da poesia da segunda geração modernista.

Drummond: o poeta do “sentimento do mundo”

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


No início do poema “Mãos dadas” o eu-lírico drummondiano afirma: "Não serei o poeta de um mundo caduco. / Também não cantarei o mundo futuro". E no final do mesmo poema, complementa: “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.” Desinteressado do passado (o mundo caduco) ou do futuro, esse poema anuncia o compromisso do poeta com os semelhantes. É a face social de Drummond se revelando.

A temática social, resultante de uma visão dolorosa e penetrante da realidade, predomina em Sentimento do mundo (1940) e A rosa do povo (1945), obras que não fogem a uma tendência observável em todo o mundo, na época: a literatura comprometida com a denúncia da ascensão do nazi-fascismo. A consciência do tenso momento histórico produz a indagação filosófica sobre o sentido da vida, pergunta para a qual o poeta encontra, muitas vezes, respostas pessimistas.

O passado ressurge inúmeras vezes como antítese para a realidade presente. Nos primeiros livros, a ironia predominava na observação desse passado; mais tarde, o que vale são as impressões gravadas na memória. Transformar essas impressões em poemas significa reinterpretar o passado com novos olhos. O tom agora é afetuoso, não mais irônico, como no poema “Infância”.

Mineiro de Itabira, nascido em 1902, Carlos Drummond de Andrade se arma com as palavras para denunciar a opressão e lutar pela construção de um mundo menos egoísta. Poetisa o amor, a infância, o “estar no mundo”, a família, as dificuldades de compreender os sentimentos, o fazer poético, o “mundo mundo vasto mundo”, conforme expressa no poema “E agora, José ?”.

Nono filho de um fazendeiro, Drummond foi expulso de um colégio de padres jesuítas, no Rio de Janeiro, acusado de “insubordinação mental”. E o caráter questionador do poeta, jamais foi amainado. Em 1928, o polêmico poema “No meio do caminho” foi publicado nas páginas da revista Antropofagia e suscitou grande controvérsia. De um lado, os modernistas o reconheciam como uma manifestação significativa dos novos valores estéticos. Do outro, a opinião pública via o poema como uma síntese do desrespeito da nova geração de poetas em relação à “boa” literatura.

Durante boa parte da vida, Drummond conciliou sua atuação como funcionário público com a intensa criação literária. Além dos trinta livros de poesia, tem livros três livros infantis publicados e dezenove de prosa. Farmacêutico de formação, foi chefe do gabinete do Ministro da Educação entre 1934 e 1945, ano em que passou a trabalhar no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Até a década 1950, Drummond era conhecido apenas como poeta, apesar de já ter publicado o livro em prosa “Confissões de Minas”, em 1944. A obra “Contos de Aprendiz” chama a atenção da crítica para o Drummond ficcionista. As crônicas aparecem nos jornais, enquanto poemas e contos eram publicados em obras. Com a aposentadoria em 1962, a produção do escritor se intensifica.

Em 1987, a vida de Carlos Drummond de Andrade foi abalada pela morte da filha, Maria Julieta. No velório, muito abatido, o poeta comentou que começava ali a destruição da família Andrade. Exatos 12 dias mais tarde, o desolado coração do pai Carlos, parou de bater.

Depois da morte de Drummond, reuniu-se no livro “O amor natural” (1992) uma série de poemas eróticos mantidos em sigilo e que foram associados a um suposto caso extraconjugal mantido pelo poeta. Verdadeiro ou não o caso, o importante é que se trata de poemas bem audaciosos, em que se explora o aspecto físico do amor. Alguns enxergarão pornografia nestes poemas; outros, o erotismo transformado em linguagem poética da alta qualidade.

Toda a trajetória do poeta - qualquer que seja o assunto tratado – sobressai a tentativa de conhecer a si mesmo e aos outros homens, através da volta ao passado, da adesão ao presente e da projeção num futuro possível.

Didaticamente, a obra de Carlos Drummond de Andrade é classificada como pertencente ao segundo tempo modernista. Porém, os mais de sessenta anos de escrita drummondiana ultrapassam classificações. A questão principal de suas obras reflete: “Quanto vale o homem? / Menos, mais que o peso? / Hoje mais que ontem? Vale menos, velho? / Vale menos, morto? / Menos um que outro, / se o valor do homem /é medida de homem?”. Mergulhar no universo drummondiano é fazer um exame de auto-conhecimento. Vale conferir!