terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

"Senhora", de José de Alencar: reflexo do público leitor

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.

Para melhor entendermos uma obra literária devemos contemplar o que o crítico literário Antonio Candido denomina “texto e contexto”; a estrutura da obra – seu texto – é tão importante quanto o momento em que foi escrita – contexto.

A fim de esboçar uma das várias possibilidades interpretativas para o romance Senhora, de José de Alencar, focalizaremos em primeiro momento sua contextualização histórica enfatizando a escola literária da qual faz parte e o que isto implica para o texto.

O Romantismo é considerado a arte da burguesia, a qual buscava uma arte que se identificasse e disseminasse novos padrões de expressão artística que estivessem ligados ao cotidiano aristocrata. A corrente trás consigo marcas profundas da influência capitalista e da ascensão burguesa, marcada pelo individualismo e liberalismo, referências advindas dos ideais da Revolução Burguesa.

A arte romântica retrata a efervescência social e política, esperança e paixão, luta e revolução do cotidiano burguês. Quebrando os padrões clássicos, a arte deveria ser expressão da emoção, intuição e inspiração, de vocabulário simples, de liberdade formal, cheia de descrições minuciosas com emprego constante de metáforas e comparações.

No século XVIII Jean Jacques Rousseau já havia anunciado o mito do retorno à natureza: “o homem é bom por natureza, a sociedade o corrompe”. O movimento do Sturm und Drang (tempestade e ímpeto), precursor do Romantismo, recebeu influências deste filósofo francês iluminista. Dele advém o culto à natureza e o sentimento em oposição à razão. A valorização do sentimento e da emoção leva o autor romântico a explorar o subjetivismo, aspecto que produz uma literatura de tom intimista e confessional. Mas o Romantismo não é apenas isso.

A instauração do Romantismo no Brasil coincidiu com o processo de afirmação de nossa Independência. Os ideais políticos, artísticos e sociais dessa corrente literária vinham ao encontro das aspirações de criar no país uma efetiva consciência nacional. Significativamente, porém, o primeiro “grito” mais consciente do movimento não veio do país, mas de brasileiros que estavam em Paris: “Tudo pelo Brasil, e para o Brasil”, dizia a epígrafe da Niterói – Revista Brasiliense (1836). Pouco antes, Gonçalves de Magalhães, um dos diretores dessa revista, havia publicado em Paris Suspiros Poéticos e Saudades, primeira coletânea de poemas românticos.

Tendo Magalhães como pioneiro, a poesia romântica foi assim dividida: primeira geração – Indianista ou Nacionalista (principais membros: Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias); segunda geração – Mal do século ou Ultra Romântico (Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Junqueira Freire e Fagundes Varela); e a terceira geração – Condoreira (Castro Alves e Sousândrade). Muitos equívocos se formam ao tomar o grande mestre do Romantismo brasileiro como membro da primeira geração. Sim! José de Alencar teve obras indianistas, mas cuidado!, suas obras são prosas indianistas e históricas e não poesia!

Alencar, grande consolidador da literatura brasileira, dividiu suas obras em três categorias: romances urbanos; romances regionalistas e a supracitada, romances históricos e indianistas. É da primeira categoria a obra em análise nesse artigo; Senhora, um retrato apurado da sociedade burguesa carioca do século XIX, conta os encontros e desencontros dos protagonistas, estes, reflexo dos próprios valores e costumes dos leitores.

Conhecido mais como Senhora (embora o nome completo seja Senhora: perfil de mulher), o romance alencariano narra em terceira pessoa a história de Aurélia Camargo, que vive com sua mãe viúva e um irmão num subúrbio do Rio de Janeiro. Aurélia apaixona-se por Fernando Seixas e este por ela, de modo que combinam casamento. Porém, Seixas, abandona-a por outra mulher a qual tem dote (quantia em dinheiro ou bens dado ao noivo) para o casamento. Uma herança inesperada beneficia Aurélia, propiciando-lhe a oportunidade de reconquistar o seu amor.

Aurélia tem 18 anos e não podendo gerir legalmente seus bens, tem um tutor que supostamente coordena suas finanças. É Lemos, seu tio e tutor, quem fica incumbido de propor a Seixas um casamento com uma moça de grande dote. Impõe, no entanto, que ele aceite a proposta sem conhecer a identidade da noiva. Seixas, endividado, aceita a oferta. Ao saber que a noiva é Aurélia, fica enormemente feliz. Mas, na noite de núpcias, Aurélia lhe revela a verdade sobre o casamento: era apenas uma vingança pelo abandono no passado; e mostrando-lhe o recibo, expulsa-o do quarto, conforme acompanhamos a seguir as falas transcritas da obra:

“- Aurélia! Que significa isto?

- Representamos uma comédia, na qual ambos desempenhamos o nosso papel com perícia consumada. Podemos ter este orgulho, que os melhores atores não nos excederiam. Mas é tempo de pôr termo a esta cruel mistificação, com que nos estamos nos encarnecendo mutuamente, senhor. Entremos na realidade por mais triste que ela seja; e resigne-se cada um ao que é, eu uma mulher traída; o senhor, um homem vendido”.

A partir daí, o relacionamento entre eles se torna hipócrita. Diante de estranhos, representam um casal perfeito. A sós, Aurélia o trata como sua propriedade e Seixas aceita-se como tal até que, um pouco pelo trabalho, um pouco por sorte, consegue juntar o dinheiro que deve a Aurélia, quitando, assim, sua dívida, recuperando seu orgulho e resgatando sua liberdade. Com a possibilidade da perda, Aurélia busca o perdão de Seixas pela atitude vingativa e os dois jogam-se nos braços um do outro, “vivendo felizes para sempre”.

O livro se divide em quatro partes: “O Preço” - narra os episódios em que Aurélia e Lemos conseguem desfazer o acordo de casamento entre Seixas e Adelaide e consegue negociá-lo para a protagonista; “Quitação”- fala-nos do passado de Aurélia justificando a fortuna herdada; “Posse” – a trajetória do casamento e a humilhação que Seixas sofre; “Resgate” – a redenção de Seixas e o happy end das personagens.

Alencar, através de Aurélia, faz uma dura crítica à sociedade da época: a moça declara ter comprado um marido por ser este um “traste indispensável às mulheres honestas”. Como mulher, Aurélia é independente, capaz de cuidar da própria vida e até mesmo de gerir sua fortuna. Mas se vê obrigada a atender às exigências sociais da época, a qual esperava que as moças se casassem a fim de assumir o perfil idealizado das moças honestas.

A crítica, porém, não apaga a história de amor. Pelo contrário, faz com que o sentimento surja cada vez mais valorizado como força redentora de todas as faltas. É o amor que sente por Aurélia que desencadeará a transformação em Seixas. Recuperada a dignidade e o caráter de Fernando, Aurélia está livre para declarar seu amor. Como seria de esperar, o romance termina com a reconciliação dos amantes. Essa reconciliação faz compreender que algo socialmente aceito, o casamento por interesse e conveniência, era moralmente condenável.

Para Antonio Candido o romance Senhora trata “da compra de um marido; e teremos dado um passo adiante se refletirmos que essa compra tem um sentido social simbólico, pois é ao mesmo tempo representação e desmascaramento de costumes vigentes na época, como o casamento por dinheiro. Ao inventar a situação crua do esposo que se vende em contrato, mediante pagamento estipulado, o romancista desnuda as raízes da relação, isto é, faz uma análise socialmente radical, reduzindo o casamento ao seu aspecto essencial de compra e venda”.

É assim que os romances de costume vão, a pretexto de contar histórias de amor, consolidando o projeto literário romântico de divulgar valores morais e criar um espelho no qual o público burguês enxergava-se refletido a sua própria face, provocando a consciência.


*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 385, página 11, 13/07/2007.

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