domingo, 1 de fevereiro de 2009

Leitura e memória: toda teoria é seu acessório da biografia

Deisily de Quadros, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Graduada em Letras pela UFPR.


O que diferencia o homem do animal é o exercício do registro da memória humana.
Vygotsky



Se a literatura está hoje presente em minha vida é porque somos aquilo que vamos colhendo nos “bosques” que atravessamos. História, de acordo com meu repertório, significa a mamãe nos apresentando lindas enciclopédias para tentar sanar as dúvidas representadas pelos porquês da infância; o papai com seus livros de cabeceira e suas revistas de atualidades e a vovó embalando nossos sonhos de Sábado à noite com os contos de fadas tradicionais ou com os que sabiamente criava.



Visitei também na escola o Menino Maluquinho, uma certa fada que tinha idéias, a Isabel marcada por uma lágrima, o Zezé e o carinhoso Portuga e o Tistu com seu dedo verde. Essas visitas levaram-me a buscar e conhecer novos sendeiros como o senhor Manuel Bandeira, o inestimável Drummond, a senhora Cecília Meireles, a dona Helena Kolody, a senhora Rachel de Queiroz, dentre outros belíssimos autores.



São imagens como essas que povoam minha memória e que acesso quando falo em Histórias, leituras. A memória faz parte de todos nós. É construída por fragmentos das situações que vivenciamos, dos caminhos que percorremos, das experiências que temos ao longo da vida. Portanto, a memória pode apresentar semelhanças e diferenças nos indivíduos.



Segundo Ecléa Bosi, no seu livro Memória e sociedade: lembranças de velhos (1987), a memória pessoal “é também uma memória social, familiar e grupal”. Assim, a recordação da vovó contando histórias pode não ser somente minha; pode também ter um significado importante para meus irmãos ou primos, sendo uma memória pessoal e familiar. Podemos ir ainda mais longe: a figura da avó contando histórias marcou algumas gerações, tornando-se, portanto, uma memória coletiva.



A palavra história fica grávida de significados (termo usado por Paulo Freire) quando busco na memória recordações passadas, mas também presentes. Isso porque memória não é simplesmente um passado, um ponto final, um fim em si mesma. A memória é construção, está em constante renovação. Afinal, não parei de ouvir e ler histórias quando criança. Não deixei de vivenciar experiências naquela época. Todos os dias, visitamos novos saberes, novos sendeiros, e não somos passíveis às informações. Interagimos, questionamos, somos por elas afetados de alguma forma.



E graças às bênçãos do esquecimento, não nos “funizamos”. O personagem Irineu Funes, do conto Funes, o memorioso, do escritor argentino Jorge Luiz Borges (Ficções, 1944), guardava cada detalhe do que presenciava em sua memória, porque, devido a um acidente que sofreu, deixou de ser agraciado pela arte do esquecimento. Tornou-se uma daquelas enciclopédias que prometem trazer todo o conhecimento do mundo, mas que são inacessíveis em uma daquelas bibliotecas que causam medo devido ao seu ar sacro e distante. Sua memória não era viva, contextualizada, não podia ser acionada no dia-a-dia, tamanha gama de informações continha. A memória tornou-se confusa, doente, estoque, um mostruário sem vida (termos usados pela professora Nancy da Nóbrega).



Desta forma, o mundo se confunde com o interior provinciano de um “homem-enciclopédia” que, apesar de viver em um espaço determinado (um rancho na cidade de Fray Bentos), possui uma memória cosmopolita, ou seja, o conhecimento do mundo está em sua memória.



O médico Iván Izquierdo disse, em uma entrevista concedida ao jornal O Estado de São Paulo (12 set. 2004), que uma memória como a de Funes é inconcebível e que é impossível armazenar uma quantidade tão grande de informações. Os mecanismos da memória se saturam e somente os acontecimentos mais importantes e com maior carga emocional são recordados com mais facilidade. Isso acontece porque os fatos mais importantes estimulam os mecanismos neuroquímicos que garantem a memorização. Mas todos os acontecimentos estimulavam esses mecanismos de Funes e nada se apagava de sua memória, o que o atormentava.



“O fenômeno do esquecimento é fisiológico e desempenha um papel adaptativo”, diz o doutor Izquierdo. Como Funes não esquecia de nenhum detalhe e recordava de cada acontecimento de sua vida, tornou-se escravo de seu próprio tempo e não era capaz de raciocinar, pois para isso é necessário generalizar e esquecer. Funes era incapaz de abstrair, não conseguia agrupar nada em categorias e possuía uma memória infinita: não conseguia sequer dormir, pois tinha muitas memórias



Para construir novos conhecimentos acerca da literatura, por exemplo, acionamos nossos acervos que dizem respeito ao assunto. E o trabalho com a memória ocorre em uma via de mão dupla. De um lado, a memória é acionada para que um texto possa ser interpretado. É o horizonte de expectativa de Hans Robert Jauss, os olhos-de-ver-poesia de Stanley Fish, o repertório de Wolfgang Iser, todos teóricos preocupados com a recepção literária, que serão acessados para que possa haver compreensão. Ou seja, é o conhecimento de mundo do leitor, adquirido em leituras precedentes, que vem à tona para que o texto seja apreendido.



De outro lado, a memória será renovada com os novos conhecimentos que adquirimos com a interpretação, com a leitura. Fragmentos que julgamos importantes, quer por motivos afetivos, quer por motivos de necessidade, são destacados, selecionados e organizados para que o conhecimento, o discurso, ou seja, a memória seja reelaborada. Ecléa Bosi ilustra este processo quando diz que a “memória é um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento”. E nessa arte de renovação, somos presenteados com o esquecimento do que julgamos ser de menor importância. Desse modo, temos nossa memória contextualizada e não “funificada”.



Quando lemos um livro, um quadro, um filme, uma peça, um musical, enfim, um texto, deparamo-nos com alguns sinais que emanam uma motivação e que nos fazem acionar a memória, criar laços com a alma, com o coração. Esse acervo de histórias que fica em nossa memória nos faz refletir sobre o que lemos. Com a leitura, colhemos conhecimentos que são armazenados na memória; assim dá-se a interpretação, assim atribui-se à memória a condição de herança valiosa, que é renovada a cada dia. E como a memória de cada indivíduo conta com determinadas lembranças, cada leitor visita um texto de um modo, descobrindo nele diferentes tesouros. É como Helena Kolody diz sabiamente em um de seus poemas: no poema e nas nuvens, cada um descobre o que deseja ver.



Abrir um livro, ver um filme, ouvir uma música, apreciar um quadro, é deixar aflorar as muitas malas contendo as bagagens da vida. É acessar memórias pessoais e coletivas e renová-las. É ler com olhos-de-ver-o-mundo, buscando o novo a partir da herança viva que se traz nas veredas da memória que, segundo Jacques Le Goff, em seu livro História e memória (1996), “é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”.


*Publicado originalmente no suplemento especial "Educação" do jornal "O Paraná", edição 379, página 11, 01/06/2007.

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