segunda-feira, 24 de agosto de 2009

“Os Cus de Judas”: a impotência diante de barbaridades inevitáveis

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


O escritor António Lobo Antunes nasceu em 1942, em Lisboa, na região de Benfica, onde cresceu. Formado em Medicina e especialista em psiquiatria, foi convocado para o exército português e serviu na guerra colonial em Angola. Em 1979 um fato marcaria sua trajetória profissional ao publicar seus dois primeiros romances, “Memória de Elefante” e “Os Cus de Judas”. Sucesso de crítica e público, Antunes abandona a Medicina e dedica-se integralmente à carreira de escritor.

“Os Cus de Judas” tem como tema principal a guerra da independência de Angola e os impactos desse conflito tanto do ponto de vista do colonizado como do colonizador. O autor prioriza a análise psicológica, revelando as seqüelas traumáticas originadas pela experiência que o narrador teve no campo de batalha, em que tudo era motivo de horror e de indignação, culminando com a incapacidade de adaptação para uma vida normal.

O livro é dividido em 23 capítulos, cada um nomeado com uma letra do alfabeto. O narrador se identifica como médico, fala com uma garota que ele acabou de conhecer num bar de Lisboa. O assunto principal são as memórias dele. O leitor, então, é transportado para o passado no qual o protagonista relembra o tempo em que exerceu a medicina, servindo no exército, durante 27 meses, nas linhas de combate em Angola, entre 1960 e 1970.

O período é também conturbado na terra natal do narrador, Portugal, ainda sob a ditadura de Salazar, nação que resistia ao processo de descolonização da África, ocorrido a partir da II Guerra Mundial.

Enquanto bebe, o narrador-personagem revela suas experiências. Não raramente, confunde o leitor, pela narração ininterrupta, fragmentada, muitas vezes desprovida de pontuação, o que caracteriza o fluxo de consciência. A opção do autor por esse estilo é consciente e, habilmente, construída, pois retrata de forma verossímil o estado em que o protagonista se encontra: ébrio, amargurado, desiludido.

O relato feito sobre a guerra é marcado pela crise psicológica, que se manifesta por meio de indagações filosóficas, pelo pessimismo, pelas observações irônicas, pela indignação e revolta, que vão acentuando conforme a noite avança e o narrador vai se embriagando ainda mais.

As lembranças desse médico são freqüentemente interrompidas por digressões, muitas vezes revelando o conflito existencial. A infância é retratada com um misto de tristeza e nostalgia. Em tom semelhante, o narrador descreve a casa dos pais com características tradicionais, com antepassados militares, aprendendo a valorizar as instituições como o Estado, a igreja e a família.

O discurso ideológico oco e hipócrita é assimilado em toda a sua infância, sobretudo através de suas tias idosas, que não cessam de censurá-lo: “estás magro (...) Felizmente que a tropa há-de torná-lo um homem”.

Chega o alistamento, e com ele, as visitas dominicais da família e a perda de identidade. Pouco depois, o temido momento do embarque para Angola, para o Cus de Judas. Momentos antes da viagem, o narrador-personagem chora no banheiro. A infância novamente evocada para suprir a ausência de amigos.

Na capital, Luanda, a miséria extrema, fruto da colonização portuguesa, desperta a revolta do narrador. Incapaz de se recuperar do trauma causado pelos horrores que presenciou, acaba sofrendo de incurável niilismo.

As reminiscências da guerra são pesarosas. A guerra associada a doenças e a excrementos, era contrastada pelas confidências sexuais do tenente com a criada, assim como as próprias escapadas com garotas sujas que viviam em barracos da região.

Além da presença de um inimigo feroz, o Movimento pela Libertação de Angola (MPLA), o narrador também se lembra da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (Pide), formada por agentes de repressão do Estado Novo de Salazar, que, de forma cruel, obrigavam os prisioneiros a cavar a própria cova para depois os executar.

A ilusão de ser escritor é substituída pela rotina de sobrevoar os campos de batalha em busca de feridos para tratar, acompanhado por um enfermeiro desbocado que tinha aversão a sangue. Confessa à sua acompanhante que é incapaz de protestar sua revolta, pois é um fraco, inclusive não tendo participado de uma rebelião em sua tropa, ao contrário de um superior que impediu até mesmo o estupro de uma camponesa angolana por um soldado.

O primeiro romance sobre o conflito e a independência angolana é uma referência histórica quase obrigatória. A tragédia colonial é retratada do ponto de vista da impotência do ser humano diante da violência e do desrespeito aos valores sociais e morais que abalam o sentido da vida, apresentando contradições e sentimentos, emoções e angústia que revelam toda a fragilidade da alma diante de um quadro inóspito: “(...) eu perguntava ao capitão o que fizeram ao meu povo, o que fizeram de nós aqui sentados à espera nesta paisagem sem mar (...) numa terra que não nos pertence, a morrer de paludismo e balas (...) de emboscadas e de minas, lutando contra um inimigo invisível, contra os dias que não se sucedem e indefinidamente se alongam, contra a saudade, a indignação e o remorso (...)”.

Composições de Lygia Fagundes Telles

Geórgia Pereira, Acadêmica de Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina - UEL.


Maestrina ao abordar os sentimentos humanos, Lygia Fagundes Telles revela o interior de seus personagens como uma música: compõe as melodias doces no andamento adágio, quando quer ser lenta e minuciosa nos seus detalhes descritivos; allegro quando quer revelar sensações de felicidade e êxtase interior de suas figuras; ou andante, bem compassado, que inebria e prende o leitor até o final de suas narrativas. “Apertou os maxilares nua contração dolorosa. Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu – conhecia tudo tão bem, mas tão bem! Quase sentia nas narinas o perfume dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmido da madrugada, ah, essa madrugada”! Este é um trecho do conto “A caçada”, no qual a escritora suscita a expectativa do leitor até o final do texto, tecendo as inquietações da mente do personagem e conquistando quem lê.

Com o dom de grandes composições literárias e regendo a palavra com tamanha sabedoria, Lygia só poderia ser destaque no mundo das letras. A construção de sua carreira começou em 1938 com a publicação de seu primeiro livro de contos, “Porão e Sobrado”. Tal obra foi incentivada pelo pai, influente advogado do interior paulista. Nascida em São Paulo em 19 de abril de 1923, Lygia Fagundes Telles é filha de Durval de Azevedo Fagundes e Maria do Rosário Silva Jardim de Moura. Graduada em Educação Física e Direto, Lygia teve o primeiro contato íntimo com a literatura durante a faculdade, no início dos anos 40. Nessa época ela conheceu ícones como Mário e Oswald de Andrade, além de se aproximar de uma pessoa que se tornaria sua grande amiga, a poetisa Hilda Hilst. Ainda durante esta década, escreve dois livros de contos: “Praia Viva” e “O cacto Vermelho”.

Anos mais tarde, já pelos idos de 50, Lygia assinala sua transição para uma produção literária mais rica e madura, escrevendo o romance “Ciranda de Pedra” publicada em 1954, que inspirou a primeira versão da novela em 1981, e a atual que recebe o mesmo nome. Durante a década de 60, a escritora publica mais um de seus romances, “Verão no Aquário”, e é nomeada procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo.

A famosa obra “Antes do Baile Verde” é a reunião de contos escritos entre os anos de 1949 e 1969, mas publicados somente em 1970. A diferença temporal entre eles, esclarece o crescimento da autora e do seu texto ao longo desses 20 anos. O conto, que dá título à obra, ganhou o Prêmio Internacional Feminino para Estrangeiros e revela a postura de Talisa, uma jovem que vai à um baile de carnaval, e deixa o pai em casa a beira da morte. A escritora escancara neste conto a mediocridade do ser humano, que não se compadece com a dor e só pensa em satisfazer os seus prazeres.

Em 1977 Lygia publica outra referência para seu cabedal literário, a coletânea de contos “Seminário dos Ratos”. A obra carrega traços inconfundíveis da literatura fantástica, como o conto “As Formigas” que fala da história inusitada de um esqueleto emoldurado por formigas num quarto de pensão. O conto-título da obra também comprova a composição harmônica da autora para revelar o mundo camuflado da podridão política e burocrática.

Em 1985, Lygia Fagundes Telles é eleita como membro da Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira 16, fundada por Gregório de Mattos. Mais recentemente, conquistou o Prêmio Camões, um dos mais importantes da literatura portuguesa brasileira.

Lygia é uma das peças referenciais para a Literatura Brasileira. Com a ousadia de uma escrita intimista e ao mesmo tempo reveladora, ela compôs dez livros de contos, quatro romances, um livro de memórias e um roteiro de cinema, mostrando a pluralidade do seu trabalho e a habilidade quando o assunto é a palavra.

Antes dele se pôr

Geórgia Pereira, Acadêmica de Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina - UEL.


“Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar e te mostrarei o pôr-do-sol mais lindo do mundo”. É com esse discurso que Ricardo começa a convencer Raquel e entrar naquele velho cemitério abandonado. Ambos são personagens do conto “Venha ver o pôr do sol”, de Lygia Fagundes Telles.

Ricardo marca o encontro num lugar onde eles possam ficar a sós. Ao chegar no local, a jovem rejeita a idéia, acha o local sinistro e fica resistente, não querendo entrar no cemitério. Mas Ricardo convence que aquele encontro era importante para ele, talvez o último que eles teriam, e ela acaba cedendo ao poder de convencimento do rapaz.

Ela estava comprometida com outro homem, mais rico que Ricardo. Agora, Raquel era uma mulher que havia deixado de usar “sapatões sete léguas” e passou a usar saltos, fumando “cigarrinhos pilantras”. A jovem teria mudado seu estilo e comportamento em função do novo relacionamento e sabia que isso incomodava Ricardo, que não tinha as mesmas condições financeiras para satisfazer sua amada.

No desenrolar do conto, Lygia Fagundes Telles dá pistas da conduta de Ricardo e o que ele planeja fazer com Raquel. “Ele apanhou um pedregulho e fechou-a na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor de seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente ficou envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram” Neste trecho, a autora revela o preparo do jovem em guardar a pequena pedra que ele usaria logo depois. Ao pensar no seu ato, sua aparência se altera, ficando com feição de pessoa má.

Após entrarem no cemitério eles relembram fatos passados, do tempo que existia amor entre eles. Esse resgate permite uma maior aproximação da vítima, tocando-a pelo sentimentalismo. Conduta similar no assassino que deseja envolver a vítima. Mas no próximo diálogo ele anuncia o que seria uma morte perfeita “nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer”. Aqui Ricardo apresenta seu desejo de morte para Raquel. Apesar disso, o narrador, que é em terceira pessoa, não mostra que ela tenha percebido a dimensão de tal comentário, pois a jovem jamais julgou a crueldade que seu ex-namorado pudesse ter e se mostra, em alguns momentos, até mesmo ingênua.

As descrições feita pela autora permitem que o leitor entre no cenário apresentado. A riqueza de detalhes revela a capacidade de representar o local de forma muito próxima e favorecer a interação entre a obra e o leitor. “O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrava-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos enegrecidos como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte”. Tal descrição confirma a intenção do conto de camuflar a morte, apagar todas as marcas e torná-la lenta e silenciosa, assim como foi a de Raquel.

Durante a narrativa, Ricardo sempre se refere ao túmulo onde supostamente estaria sua família como “meus mortos”, “minha gente”. Apenas em um momento ele usa a palavra mãe, mas família nunca. Essa escolha sugere que ele possa ter assassinado mais pessoas, além de Raquel.

Dentro do jazigo, o conto atinge seu clímax. Ricardo readquire sua feição de malvado, com sorriso sarcástico, usando palavras doces e suaves, que ressaltam seu papel de vingador. O rapaz vai brincando com ela e reafirmando que ainda verá o pôr-do-sol, mas ela percebe que o encontro tinha outra intenção e o medo assola sua mente. Ele tranca a jovem no jazigo, e mesmo implorando para soltá-la, Ricardo não tem piedade alguma, pois tem a certeza que “nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado.” Ele vai embora, como se nada tivesse acontecido.

Este ato cruel é a forma doce da vingança que Ricardo encontrou para satisfazer seu orgulho, e esconder a rejeição que ele sentiu quando Raquel se envolveu em outro caso. Lygia aborda a crueldade humana de forma sutil e mostra que o homem interpreta o personagem que ele quiser, no momento que lhe for conveniente. É uma metamorfose velada que acontece a todo instante.

O conto fascina pelo modo de sua construção, com descrições ricas recriando o espaço no imaginário do leitor aliado as pequenas transformações sofridas pelos personagens que são justificadas no final da história. Mergulhar nesse universo apresentado por Lygia Fagundes Telles é ainda mais interessante quando acontece lentamente, se permitindo ser desvendado por ela e deixar que ela mostre a realidade camuflada pelas palavras.

O contexto histórico do Realismo literário

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


Riqueza e miséria, crescimento desordenado dos centros urbanos, mudança radical nos meios de transporte e comunicação, grande avanços científicos. A Revolução Industrial transformou a face da Europa e trouxe consigo a urgência de uma nova estética, capaz de refletir esse processo. O Realismo nasce para responder a essa necessidade.


* Um paradoxo capitalista: desenvolvimento e miséria

Em 1800 a população da Europa chegava a 190 milhões de pessoas. Cem anos mais tarde, 460 milhões. Esses números traduzem uma evidente expansão de mercado e do trabalho. Como o declínio dos tipos tradicionais de lavoura e o uso das máquinas, os camponeses foram expulsos do interior e iam para as cidades em busca de emprego nas indústrias e fábricas. Mesmo os grandes centros, como Londres e Paris, não contavam com uma infra-estrutura adequada para absorver um crescimento populacional tão grande. Logo começaram a enfrentar problemas graves, como as epidemias. Nesse contexto de pobreza crescente, a mendicância e a prostituição tornaram-se subprodutos indesejáveis e degradantes da sociedade.


* Novas doutrinas sociais

As transformações sociais exigiam novas maneiras de explicar a organização de mundo capitalista. Diferentes doutrinas surgiram para responder a esse desafio. O inglês Adam Smith acreditava que, uma vez removidas todas as restrições ao comércio e ao capital, o desenvolvimento econômico aconteceria de modo natural. Para ele, um Estado liberalista tinha a função de preservar a lei, manter a ordem e defender a nação. A proposta do liberalismo da não-intervenção estatal da economia foi associada a uma expressão francesa, laissez-faire, que pode ser traduzida como “deixar passar”.

O economista Thomas Malthus afirmava que a pobreza era uma espécie de lei natural, ainda que cruel. Para ele, o descompasso entre o crescimento populacional e a produção de alimentos gerava um estado de pobreza permanente e inevitável. Com base nessa justificativa “científica”, alguns setores da sociedade passaram a condenar ações governamentais que tivessem como objetivo ajudar os pobres.

Karl Marx, interessado pelos processos históricos, procurou identificar, no estudo das relações de trabalho e de produção, fatores que determinavam as condições de vida de seus contemporâneos. Juntamente com Friedrich Engels, Marx lançou o “Manifesto Comunista”, em 1848, obra a qual afirmava que o sistema capitalista oprimia as pessoas e as condenava à miséria. Segundo eles, o capitalismo condenava o proletário à pobreza porque a classe de maior poder econômico – a burguesia – também controlava o Estado, valendo-se de seu poder político para explorar trabalhadores e aumentar suas propriedades. Acreditavam q a sociedade resultante da revolta do proletário seria mais igualitária. As pessoas, livres, trabalhariam em conjunto pelo bem comum. Era esse o sonho comunista que prometia uma vida mais digna e justa para todos os cidadãos.


Realismo: a sociedade no centro da obra literária

A realidade das máquinas, dos transportes e das novas teorias sociais torna inviável a visão de mundo romântica, que projetava o indivíduo e seus dramas sentimentais o centro do universo. Os artistas, como pessoas do seu tempo, procuraram um novo parâmetro de interpretação da realidade. Foi assim que a objetividade ocupou o lugar do subjetivismo romântico e a valorização desmedida da emoção foi abandonada. Em lugar de tratar dos dramas individuais o olhar realista focalizará a sociedade e os comportamentos coletivos. Como estética literária, o Realismo procura analisar a nova organização social e econômica, detectando suas causas e denunciando suas conseqüências.

Os objetivos que norteiam toda a literatura realista: produzir, por meio da arte, uma representação da realidade que permita condenar o que há de mau na sociedade. O desejo de pintar a anatomia do caráter humano se explica pela necessidade de compreender a origem de práticas e comportamentos sociais negativos. Para fazer essa análise, os escritores realistas adotarão a razão e a objetividade como lentes através das quais observam a realidade. O que revelam é uma burguesia hipócrita e fútil, que explora o proletariado enquanto professa o amor à justiça e à igualdade. Esse comportamento será denunciado em boa parte dos romances escritos nesse período.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Maria Moura: “Mulhê-macho, sim, sinhô”!

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


O romance “Memorial de Maria Moura”, escrito pela cearense Rachel de Queiroz e publicado em 1992, tem três narradores e, além da protagonista que dá título à obra, possui histórias paralelas, todas passadas em meados do século XIX. Uma versão é contada pelo padre José Maria que adota o nome de Beato Romano e depois sabe-se o porquê da mudança. Versão diversa é dada por Marialva, mulher do saltimbanco Valentim, jagunço fiel à prima da esposa, Maria Moura. A outra história é contada pela moça que incendiou sua casa e virou a vaqueira mais temida da região.

No início da narrativa, fica-se conhecendo a jovem Maria Moura, aos 17 anos, que encontra a mãe morta enforcada com o cordão de uma rede, o que, num primeiro momento parece ter sido suicídio. A moça, que é órfã de pai desde a infância, passa a ser criada pelo padrasto, Liberato, que a seduz e transforma-a em amante. O padrasto tenta induzir Maria a assinar documentos que passam a ele a propriedade deixada pelo pai. Diante da recusa Liberato faz ameaças e insinua que, na verdade, a mãe de Maria não se suicidou, mas foi morta por ele. O fato se confirma no desenrolar da história.

Maria Moura aos poucos vai perdendo o medo e decide matar Liberato. Contudo, apesar de tornar-se, ao longo da narrativa, uma mulher muitas vezes fria e impiedosa, ela não havia matado ninguém até então. “Não sei bem se sou capaz de ver sangue derramado. Nunca experimentei ver de perto o sangue dos outros; e pior será se for tirado pela minha mão.”

Para vingar a morte da mãe, Maria Moura seduz um caboclo, Jardilino, e convenço-o a matar o padrasto sob a promessa de casarem-se. Sentindo-se acuada pela insistência de Jardilino em possuí-la, ela induz o feitor de sua propriedade – seu fiel criado – a matar o caboclo impertinente.

Vivendo na fazenda O Limoeiro, herança do pai, a propriedade passa a ser alvo da cobiça dos primos, Irineu e Tonho, e da mulher deste último. Após a recusa de Maria, os primos apelam à justiça e à força e o que conseguem é a resistência da prima, a qual encontra capangas para defender a casa. Depois da troca de tiros, Maria percebe que a inferioridade numérica e a falta de munição seria fatal para ela e seu grupo, então, toma uma decisão radical: incendeia sua residência enquanto foge com seus homens.

Ao deixar as terras do Limoeiro, Maria Moura e seus homens vagam pelo sertão, sem abrigo, com pouca água, passando privações, repartindo parcos alimentos que conseguiam. Acatando a liderança de Maria, o bando começa, aos poucos, a se organizar e se prover de montagem, alimentos e armas.

O grupo vive aventuras e desventuras seduzido pelo ouro, e começa a praticar roubos, vivendo desregradamente. O bando acaba se estabelecendo numa propriedade próxima à Lagoa do Socorro. Reaparece, então, o padre José Maria sob o nome de Beato Romano. Sua história vem à tona. Na última paróquia em que trabalhou, não resistiu ao pecado da carne e teve um caso com Isabel, esposa de Anacleto. Este descobre a gravidez da mulher e a mata a facadas. O padre o golpeia com um móvel, matando o assassino da amante e tornando-se ele um assassino fugitivo.

Paralelamente aos enredos de Maria Moura e Beato Romano, conhece-se a história de Marialva e Valentim. Ela é prima de Maria, mas ao contrário dos irmãos Tonho e Irineu, não se interessa pela herança da protagonista. Apaixonada pelo circense Valentim, ela foge da árdua vida impingida pelos irmãos e vai viver esse amor protegido pela prima que acolhe o casal e faz do circense seu aliado.

Maria Moura cada vez mais se torna autoconfiante, ousada e ambiciosa. Sabendo que comerciantes andavam pela região com grande soma em dinheiro para aquisição de gado, ela prepara as armas para a aventura insana. Prevendo um eventual fracasso, apronta um testamento deixando seus bens para Alexandre, filho de Marialva e Valentim, já que ela não possui herdeiro natural.

Após os preparativos para a partida, o grupo pede à Maria que o Beato Romano os acompanhe. Ela desconfia que a fé incutida pelo ex-padre nos seus capangas não seja útil em dia de conflito. Além da presença de Romano, o tom da voz de seus homens lhe pareceu um agouro. No entanto, Rachel de Queiroz deixa em aberto o destino das personagens, desafiadas sempre pelas adversidades do meio, divididas entre o crime e o remorso, e antes de tudo, sobreviventes do sertão agreste.

Em uma sociedade marcada pelo poder masculino, branco e rico, Maria Moura, a despeito de sua condição de mulher, eleva-se dentre outros inferiorizados e desafia o patriarcalismo. Mulher corajosa e destemida, através de seus homens de confiança, tocaias, moitas, justiças e injustiças, cria um mundo de regras próprias.

“Memorial de Maria Moura” é um romance que traz um retrato sem retoques de algumas relações sociais, culturais, morais, afetivas entre personagens sábias e comovidamente delineadas.

A construção da obra Memorial de Maria Moura

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


A obra “Memorial de Maria de Moura”, de 1992, é o último livro produzido pela escritora cearense Rachel de Queiroz, a primeira mulher a ser eleita à Academia Brasileira de Letras. O romance narra, entre outras histórias, a da protagonista que dá título à obra. Órfã, Maria Moura entra em atrito com os primos pela disputa de herança de terra. Cercada pelos parentes, que pretendiam seqüestrá-la e tomar suas posses, a moça incendeia a própria casa e sai pelos fundos, fugindo com pouca bagagem e um ou outro “cabra” fiel.

De moça sozinha no mundo à líder de um bando de jagunços do sertão brasileiro, o enredo se passa em meados do século XIX, lá pelos idos de 1850. A narração do livro assemelha-se à maneira de uma telenovela. Tanto é que a obra foi adaptada para a televisão, em forma de minissérie, dois anos após sua publicação.

O livro, em primeiro momento, pode intimidar o leitor, pois possui 500 páginas. Contudo, a estrutura narrativa lembra o formato do antigo folhetim, que tinha capítulos não muito longos, impregnados de ação, conflito amoroso e tensão constante entre as personagens, pode seduzir o público. Outro fator que pode chamar a atenção do leitor é a linguagem simples e direta que busca reproduzir a fala do sertanejo, bem como retratar a cultura popular. Tal característica permite a leitura rápida.

A dedicatória do livro é dirigida, entre outros, à Elizabeth I, rainha da Inglaterra entre 1558 e 1603, que, segundo Rachel de Queiroz, serviu de inspiração para a criação de Maria Moura, pelo caráter forte e pela liderança nata.

Elizabeth, em discurso às tropas inglesas que enfrentariam a Invencível Armada Espanhola, disse: “Sei que tenho o corpo de uma mulher fraca e frágil; mas tenho também o coração e o estômago de um rei – e de um rei da Inglaterra”. E Maria Moura em um dos seus discursos, argumenta: “Nunca se viu mulher resistindo à força contra soldado. Mulher, pra homem (...) só serve para dar faniquito. Pois, comigo eles vão ver. E, se eu sinto que perco a parada, vou-me embora com meus homens, mas me retiro atirando. E deixo um estrago feio atrás de mim. (...) prá ninguém mais querer botar o pé no meu pescoço.”

Na obra são retomados alguns dos temas básicos de Rachel de Queiroz: o Nordeste problemático, a preocupação social, as figuras femininas singulares. Misturam-se na narrativa todas as forças e fraquezas, todas as virtudes e defeitos da condição humana, desde o amor ao ódio, desde o crime ao remorso.

Ao contrário da narração tradicional, temos em “Memorial de Maria Moura”, a presença de múltiplas vozes, o que caracteriza a polifonia, ou seja, a história é contada do ponto de vista de mais de uma personagem. A dinâmica entre os três narradores torna a obra envolvente, e não se pode dizer que o livro traz uma história apenas: são pelo menos três. No eixo central tem-se Maria Moura e os primos, Tonho e Irineu, com os quais ela disputa a herança. Como núcleos paralelos e secundários, têm-se o conflito do padre José Maria que abandona a batina e torna-se o Beato Romano. O terceiro núcleo foca o casal Marialva e Valentim, e a vida de ambos no circo em trabalha.

O enredo é fragmentado, quebrando a linearidade, emaranhando as ações de diversas personagens, revelando o passado delas por meio de vários “flashbacks”. As três versões acabam se juntando e entrelaçadas, formam um painel de nordestinidade que a Rachel soube trabalhar muito bem.

Sobre a criação desse livro, Rachel de Queiroz contou: “Eu estava fazendo um trabalho com minha irmã Maria Luíza sobre a seca do Nordeste. Fomos procurar livros antigos e descobrimos que a primeira grande seca registrada oficialmente aconteceu em Pernambuco em 1602. Nessa seca, uma mulher chamada Maria de Oliveira tornou-se conhecida, porque, juntamente com os filhos e uns cabras, saiu assaltando fazendas. Pois eu fiquei com essa mulher na cabeça. Uma mulher que saía com os filhos e um bando de homens assaltando fazendas era a Lampiona da época, pensei. Ao mesmo tempo, eu sempre admirei muito a Rainha Elisabeth I da Inglaterra, que morreu no início do século XVII. Li várias biografias dela, a ponto de me sentir uma espécie de amiga íntima, dessas que conhecem todos os pensamentos e sofrimentos. A certa altura, pensei: ‘Essas mulheres se parecem de algum modo’. E comecei a misturar as duas. Estava pronto o esqueleto do romance. A partir daí fui desenvolvendo os episódios.”

Na próxima edição da coluna, o enredo da “mulhê-macho”, criada por Rachel de Queiroz.

Rachel de Queiroz: a primeira escritora “imortal”

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


Única mulher a figurar entre os romancistas da geração de 1930, Rachel de Queiroz (1910 - 2003) era prima de José de Alencar pela genealogia materna. Cedo manifestou a paixão por livros. Costumava contar que leu “Ubirajara”, obra do primo célebre, aos cinco anos: “obviamente sem entender nada”.

A vida escaldante no nordeste brasileiro fez a família Queiroz fugir do Ceará. A face cruel da seca revelou-se para a menina Rachel em 1915, então com cinco anos. O episódio ficou gravado na memória da pequena e anos mais tarde tornou-se a base para a construção do romance “O Quinze”.

As circunstâncias que a levaram a escrever seu primeiro livro, um dos mais importantes, são curiosas. Padecendo de uma séria congestão pulmonar, com suspeita de tuberculose, a jovem de dezenove anos tinha que se submeter a um rígido tratamento. A mãe obrigava Rachel deitar-se cedo, antes das 21 horas. Como ela não tinha sono, decidiu anotar em seus cadernos, à luz de lampião, um romance sobre a seca, comovida pelo flagelo que presenciou. A edição de mil exemplares foi custeada pelos pais, que “emprestaram” à filha os dois contos de réis necessários.

No Ceará a crítica não deu muita atenção ao romance, mas com os elogios de Mário de Andrade e de Augusto Frederico Schmidt, Rachel de Queiroz se transformou numa celebridade literária. O sucesso de venda da primeira tiragem garantiu o pagamento do empréstimo aos pais. “O Quinze” ajudou a firmar a tradição dos romances vistos, na época, como criadores do “ciclo nordestino” na literatura brasileira.

Ao receber o prêmio da Fundação Graça Aranha em 1931, um ano após o lançamento do livro de estréia, ela faz contato com integrantes do Partido Comunista (PC) e ao voltar a Fortaleza, colaborou ativamente na fundação do PC cearense, chegando a ser fichada como “agitadora comunista” pela polícia política de Pernambuco. O namoro com o partido, porém, durou pouco. Em 1932, ao ser informada de que o romance “João Miguel”, no prelo, não seria aprovado, a escritora rompe com o partido. O livro é publicado, Rachel se muda para São Paulo e liga-se ao grupo trotskista.

Em 1937, no início da ditadura Getulista (conhecida também como Estado Novo), Rachel lança o romance “Caminho de pedras”. Seus livros são queimados em Salvador, junto aos de Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos, por serem considerados subversivos. Ficou presa durante três meses numa sala de cinema do Corpo de Bombeiros de Fortaleza, por sua militância política.

Definindo-se jornalista, Rachel publicou mais de duas mil crônicas em diversos jornais brasileiros, cuja seleção proporcionou a edição dos seguintes livros: “A donzela e a moura torta”; “Cem crônicas escolhidas”; “O brasileiro perplexo” e “O caçador de tatu”. Escreveu, também, duas peças de teatro, “Lampião” (1953) e “A beata Maria do Egito” (1958), laureada com o prêmio de teatro do Instituto Nacional do Livro. No campo da literatura infantil, escreveu o livro “O menino mágico”, a pedido de Lúcia Benedetti. O livro, no entanto, surgiu das histórias que inventava para os netos.

Leitora ávida, não só de obras em língua portuguesa, traduziu mais de 40 obras de vários escritores. Entre seus autores preferidos aparecia com destaque Dostoiévski, de quem traduziu várias narrativas, incluindo três volumes de “Os irmãos Karamazov”. Também vieram dos russos as várias leituras socialistas que seduziram a jovem e levaram-na a abraçar o trotskismo. Mas a escritora não pensava só em política e gostava de ler Balzac, Jane Austen, Emily Brönte, Jack London, Júlio Verne e outros. Todos esses autores tiveram alguma de suas obras traduzida por Rachel.

Em 1992 publica o romance “Memorial de Maria Moura” e dois anos mais tarde ocorre a adaptação dele para a televisão, o que a tornou ainda mais popular, e provocou o leilão de editoras pelo direito de publicação de suas obras completas rendeu-lhe cento e cinqüenta mil dólares. Nada mau para uma autora que confessou não gostar de escrever e que se dizia mais jornalista do que escritora.

Sempre humilde, Rachel de Queiroz assim definia-se: “Eu não faço grande uso de mim mesma, e, portanto, da minha chamada ‘obra’. Eu fiz uns livrinhos, estão aí, tomara que as pessoas continuem gostando”. Essa serenidade parece tê-la acompanhado ao longo de seus 92 anos de vida. Sofrendo de diabetes, morreu enquanto dormia em sua casa no bairro do Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro, 13 dias antes de completar 93 anos, vítima de um infarto do miocárdio. A escritora cearense, foi a primeira mulher eleita para a Academia Brasileira de Letras, tornou-se “imortal” ao lado do reduto até então exclusivamente masculino, abrindo caminho para outras autoras.



Dica de consulta sobre a autora:

Site da Academia Brasileira de Letras -

http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=115

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Matando para libertar “Teresa”

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


José Rubem Fonseca nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 1925. Antes de ser consagrado um dos principais escritores do país pela crítica e pelo público, ganhando diversos prêmios nacionais e internacionais, Rubem Fonseca foi comissário de polícia. É provável que dessa experiência venha um vasto catálogo de casos e personagens do submundo do crime, mas se fossem meros relatos da violência urbana, não seria literatura e sim boletim de ocorrência, ou nota policial jornalística. O fato de conseguir enxergar as tragédias humanas, dando a elas uma densidade única, diz respeito à sensibilidade e à arte construtiva das palavras e da imaginação fonsequiana.

Sua escrita agressiva se caracteriza pela utilização de frases curtas, cortes abruptos e diálogos ríspidos, e algumas particularidades repugnantes, como a escatologia, por exemplo. Com preciso domínio sobre o ofício, o escritor é capaz de criar as situações mais inesperadas, fazendo parecer que nada de extraordinário esteja acontecendo. É assim o enredo do conto “Teresa”.

Dividido em 27 narrativas breves, o livro “Ela e outras mulheres”, lançado em 2006 pela editora Companhia das Letras, apresenta todos os elementos da ficção fonsequiana que tanto atraem os leitores brasileiros, sobretudo os mais jovens. Batizados com nomes de mulheres e seguindo a ordem do nosso alfabeto, os contos estão permeados de violência, sexo, desejo, ambição, pobreza, discórdia, miséria e luxo.

Os títulos dos 27 contos são nomes próprios femininos, em ordem alfabética, de “Alice” a “Zezé” e enfocam a violência urbana em narrativas curtas e rápidas. Uma característica significativa é a falta de aspas e travessões nos diálogos. Fonseca não distingue as falas dos personagens, detalhe que se por um lado exige mais atenção do leitor.

Inicialmente o conto “Teresa” aponta para uma possível falta de caráter da personagem feminina. A idoneidade de dona Teresa é colocada sob suspeita pelos dois filhos do doutor Gumercindo. Querendo o apartamento ocupado pelo pai e sua segunda esposa, os filhos assim expressam ao falar da situação: “Um apartamento desse tamanho e só moram lá o velho e aquela vigarista, disse um deles. A filha-da-puta só quer o dinheiro do velho, respondeu o outro, mas ele não morre, noventa anos e não morre, ele deve estar muito decepcionada, já atura o velho há cinco anos.”

Quem narra a história é José, vizinho do casal de anciãos. Após ouvir esse comentário, ele fica mais atento às atitudes de Teresa e observa: “Um dia depois de ouvir a conversa dos filhos no elevador, desci com o doutor Gumercindo e dona Teresa. Sem que percebessem, olhei dona Teresa atentamente. Ela cuidava do doutor Gumercindo com carinho e desvelo, nenhuma outra mulher do prédio tratava o marido daquela maneira.”

José se descreve despachante. Faz viagens para despachar. No retorno de uma das viagens, ele percebe que os dois filhos do doutor ocupam o apartamento, junto com duas mulheres “com caras de putas”, segundo o narrador. Ao perguntar para o porteiro fica sabendo que Gumercindo morreu e que dona Teresa pouco sai de casa. Ele, então, investiga o fato. Barrado pela empregada dos filhos, José não consegue ver dona Teresa. Com astúcia, volta ao apartamento dois dias depois, na folga da empregada e assim consegue adentrar o imóvel: “Um dos grandões entreabriu a porta. Vim visitar dona Teresa, eu disse. Ela não pode receber visitas, ele respondeu, irritado, dá o fora. Começou a fechar a porta, mas não deixei. Abre essa merda, eu disse, encostando a pistola nos cornos dele.”

Tal atitude junto à necessidade de deslocamento para despachar, alerta os leitores de que o “despacho” pode não ser algo relativo a veículo, criando uma tensão. Descobre-se, ao final, que José é um assassino de aluguel, que, aliás, freqüenta outras tramas, mostrando muita habilidade em casos difíceis de “despacho”. No conto “Teresa”, ele será uma espécie de salvador, pois mata os filhos de Gumercindo, liberta dona Teresa amarrada em uma cama de hospital, expulsa as “putas” do apartamento, devolvendo-o à anciã. Ela o agradece com um beijo na mão e diz que ele é um santo. Sozinho, porém, ele se define: “Um santo porra nenhuma. Sou um assassino profissional, mato por dinheiro. Nem sempre.”, e o conto se encerra.

Criticado por boa parte da impressa especializada por insistir em histórias de violência e sexo, Rubem Fonseca parece não se importar muito com tais opiniões. A prosa de autor pode ser vista como uma espécie de espelho que reflete a realidade por meio da literatura. Mais do que dialogar com os leitores sobre temas que incomodam, sua escrita coloca o ser humano no centro de todas as coisas, revelando a complexidade de uma existência quase sempre sem sentido. Exemplo claro desse flerte existencial, que quase sempre aparece velado por diálogos e frase banais, é a atitude libertária do matador profissional Zé, do conto “Teresa”. O enredo é curtinho e vale a pena ser lido na íntegra!

Um mineiro muito carioca

Geórgia Pereira, Acadêmica de Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina - UEL.

Mineiro, bastante reservado como muitos de sua terra, e avesso à exposição pública, Rubem Fonseca, 81 anos, é um dos importantes nomes que compõem a produção literária no Brasil. Ele construiu ao longo de sua carreira, romances e contos que lhe caracterizam pela abordagem de temas densos, com linguagem sintética e ágil.

O autor está inserido na esfera das produções contemporâneas, que datam da década de 60. O marco de sua produção aconteceu com o livro de contos Feliz Ano Novo (1975), alvo de críticas e motivo de censura. Desde então, Fonseca apresentou estilo conciso e direto, imprimindo em seus textos, temáticas policiais e violentas, com assassinos, prostitutas e amantes.

Além do tom nitidamente policialesco, em que há geralmente um crime ou um mistério a ser desvendado, seus textos podem ser vistos como uma paródia do gênero policial tradicional, visto que os crimes atuam apenas como um disfarce de suas críticas a uma sociedade opressora do indivíduo.

Romancista e contista, Rubem imprime em suas obras um ritmo intenso na percepção dos acontecimentos, mas deixa a cargo de quem lê, a completude e a interpretação do enredo. Traz uma narrativa “curta e grossa” repleta de marcas de aspereza, retratando a realidade do subúrbio carioca. Sua literatura é crua, desnuda a ação humana sem nenhum pudor.

Mineiro de Juiz de Fora, José Rubem Fonseca nasceu no dia 11 de maio de 1975. Aos 8 anos foi para o Rio de Janeiro onde estudou Direito na antiga Faculdade de Direito da Universidade do Brasil. Depois de formado, iniciou sua carreira na polícia carioca, como comissário do 16º distrito. De acordo com alguns relatos, Fonseca se tornou policial pelos mesmos motivos que o comissário Mattos cita em "Agosto", romance do autor: "No meu caso, fora simplesmente a incapacidade de arranjar um emprego melhor. Depois de três anos advogando para criminosos pobres, sem ganhar dinheiro para pagar o aluguel do escritório, sem dinheiro para casar, surgira aquela oportunidade de trabalhar vinte e quatro horas e ter setenta e duas horas de folga".

Rubem Fonseca teve atuação de destaque no grupamento policial do Rio de Janeiro entre os anos de 1952 e 58, ficando mais tempo no cargo de policial de gabinete, responsável pelas relações públicas do setor. Muitas das experiências vividas durante este período estão registradas na obra “Aluno brilhante da Escola de Polícia”. Em 1953, Fonseca foi selecionado para fazer cursos de aperfeiçoamento nos Estados Unidos, local onde estudou administração na cidade de Nova York e posteriormente, comunicação em Boston. O mineiro deixou a polícia em 1958, quando foi exonerado do cargo e ingressou na empresa Light, atuando ali durante a década de 60. Com a saída da vida dos negócios, seu novo destino foi a literatura.

Uma das novas correntes inauguradas por Fonseca foi a que o crítico literário Alfredo Bosi classificou como “brutalista”. Bosi defende que não é uma questão de estilo, mas sim o retrato da sociedade repressora da época, já que tal significado foi reconhecido durante a ditadura militar brasileira. Com o término da ditadura, Fonseca conservou essa característica para fazer o retrato mundano da violência na sociedade carioca.

Já Antonio Candido faz uso do termo “realismo feroz” na tentativa de mostrar o traço marcante no trato com o texto e com os temas retratados nas suas produções. Escrever sobre as angústias de uma sociedade essencialmente urbana – e ser identificado por essa característica – é uma opção literária feita pelo escritor

As obras de destaque são seus livros de contos como Os primeiros (1963), A coleira do cão (1965), Lúcia MacCartney (1967), Feliz ano novo (1975) e O cobrador (1979). Dentre os romances, sobressaem O caso Morel (1973), A grande arte (1983), Bufo e Spallanzani (1986) e Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (1988). Uma de suas últimas obras é intitulada “Ela e outras mulheres” que reúne 27 contos, todos com nomes próprios femininos, organizados em ordem alfabética. Tal obra foi vencedora do Prêmio Academia Brasileira de Ficção, Romance, Teatro e Conto em 2007. Além da produção de contos e romances, o autor também contribui para a produção cinematográfica, produzindo roteiros para filmes como “O Homem do ano” dirigido por José Henrique Fonseca, filho do autor, “Bufo & Spallanzani” e Relatório de um Homem Casado”, ambos dirigidos por Flávio Tambelini e “A Grande Arte”, dirigido por Walter Salles Jr.

Mais do que dialogar com os leitores sobre temas que incomodam, a escrita fonsequiana coloca o ser humano no centro de todas as coisas, revelando a complexidade de uma existência quase sempre sem sentido.

"Penélope" tece a própria morte

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


Conta a lenda grega que durante a ausência do marido, Penélope – esposa de Ulisses e mãe de Telêmaco - foi pedida em casamento por diversos pretendentes, prometendo escolher um deles logo que concluísse a peça de bordado que estava tecendo. Acontece que todas as noites ela desfazia o trabalho realizado durante o dia, adiando dessa maneira, indefinidamente, a decisão que os candidatos à sua mão aguardavam ansiosos. E se assim procedia era porque, quando seu esposo partiu para a guerra de Tróia, confiou-lhe a guarda do reino da Ítaca, pedindo-lhe que caso não retornasse, ela não se casasse enquanto Telêmaco fosse jovem.

É com base nessa lenda que Dalton Trevisan escreve o conto “Penélope”, incluso na obra “Novelas nada exemplares”. O enredo gira em torno de um casal de idosos que tem sua vida rotineira abalada por uma série de cartas anônimas que resultam no ciúme paranóico do marido e no suicídio da mulher. O texto é uma intertextualidade com a personagem Penélope, não só pelo nome do conto e da personagem, mas, sobretudo, pela simbologia da fiação. O autor vale-se do mito de Penélope para reinventar a história por meio da inversão irônica e criando uma nova situação condizente com os rumos da sociedade e do homem moderno.

Apesar de Trevisan mostrar o lado funesto e inseguro do ser humano, o autor o faz de uma maneira sutil, pois ele não aponta, não culpa e nem defende o marido por seu ciúme doentio, ele limita-se a apresentá-lo. A apresentação “sem juízo de valor” do drama do marido chega ao leitor pela voz de um narrador onisciente, que penetra na consciência da personagem de tal modo que, em certos momentos, não fica evidente se é a voz do narrador ou o pensamento do marido: “Sábado seguinte, durante o passeio, lhe ocorre: só ele recebe a carta? Pode ser engano, não tem direção. Ao menos citasse nome, data, um lugar.”

A narrativa apresenta o processo de construção do ciúme que vai do fluxo de consciência e da imaginação do marido aos acontecimentos concretos: a série de cartas anônimas deixadas na porta do casal, todos os sábados, enquanto seguiam para o passeio costumeiro. Entre a evidência das cartas e a incerteza da traição, o narrador acompanha o conflito do marido e penetra em seu inconsciente afetado pelo ciúme, mas deixa a mulher numa redoma de mistério.

Os pensamentos de Penélope não são conhecidos já que não é narrado o ponto de vista da mulher. Na maioria das vezes, ela aparece tricotando, com poucas falas durante o enredo. São os ciúmes do marido que indagam as atitudes da esposa: “Voltando as folhas, surpreendia o rosto debruçado sobre as agulhas. Toalhinha difícil, trabalhada havia meses. Recordou a lenda de Penélope, que desfazia de noite, à luz do archote, as linhas acabadas durante o dia e, à espera do marido, assim ganhava tempo de seus pretendentes. Calou-se no meio da história: ao marido ausente enganara Penélope? Para quem a mortalha que trançava? Continuou a estalar as agulhas após o regresso de Ulisses?”

O conto é análogo à lenda pelas associações entre as duas personagens que se chamam Penélope e igualmente aparecem relacionadas às fiandeiras, mas se distanciam pela oposição crucial entre vida e morte. Se no mito o que está em jogo é o amor que leva à vida conjugal, no conto é a morte e a desconfiança que provoca a fatal separação do casal.

O ato de fiar representa um eterno retorno pelo processo de tecer e desfazer o trabalho começado e interminável. A escolha de Penélope por desfazer à noite o que fez durante o dia garante-lhe tempo para fabricar suas próprias defesas contra o destino imposto pelos outros. Também no conto, Penélope é uma tecelã e decide o momento em que o trabalho ficará pronto em que cortará os fios que a prendem à vida, determinando a ocasião de sua morte.

Porém, ao contrário do mito, Penélope não suporta a longa espera, o tempo em que o marido “retornaria” a si, superando o ciúme e reconhecendo sua fidelidade. Antes, decide por fim ao drama, sendo senhora de seu destino ao cortar os fios que a ligam à vida, embora ainda dê um tempo ao marido, pelo processo de fazer e desfazer a toalhinha. Ao fazer isso, ela torna-se uma espécie de fiandeira que tece, mede e corta seu destino. E é por ser uma fiandeira que ela embaralha a vida do marido, pois ele estará condenado ao remorso e à culpa pelo suicídio da esposa, já que as cartas prosseguem após a morte dela: “‘Fui justo’, repetia, ‘fui justo’ –, com mão firme girou a chave. Abriu a porta, pisou na carta e, sentando-se na poltrona, lia o jornal em voz alta para não ouvir os gritos do silêncio.

Assim como no mito, Penélope tece/borda uma toalhinha, fazendo e desfazendo pontos, num trabalho que exige tempo e paciência. Contudo, se no mito, ao bordar a peça “interminável” Penélope perpetua o amor ao marido que está longe, no conto, Penélope tece, perto do marido, a mortalha para si mesma e da separação eterna: Entrou na sala, viu a toalhinha na mesa – a toalhinha de tricô. Penélope havia concluído a obra, era a própria mortalha que tecia”.

O conto de Dalton Trevisan faz uma inversão, resgatando e se afastando da lenda grega, ao propor um mito às avessas, em que se observa, em vez da fortaleza conjugal, a fragilidade dos laços matrimoniais e do ser humano.

Dalton Trevisan – o “vampiro de Curitiba”

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


Flagrado no último mês de agosto andando pelas ruas curitibanas, Dalton Trevisan aparenta boa saúde aos 83 anos idade. O "vampiro de Curitiba”, apelido desde 1965 – data da publicação do livro homônimo, não concede entrevistas há quase 30 anos. A distância da mídia, porém, não é senão uma escolha, já que Dalton mantém-se saudável, resultado de caminhadas diárias e alimentação disciplinada, dizem os amigos. O escritor dispensa carne vermelha, ironia no caso de um autor tratado como "vampiro". Prefere saladas, frutas, grãos e alguma carne branca. Cardápio conciso para ajudar a alimentar seus contos.

Dalton Jérson Trevisan, curitibano nascido em 1925, sempre foi avesso à imprensa, criando uma atmosfera de mistério em torno de seu nome. Não dá entrevistas nem gosta de ser fotografado. Assina apenas "D. Trevis" e não recebe a visita de estranhos. "Ele não faz isso por mal. O Dalton gosta de ficar na dele pois é contra a autopromoção", diz o diretor teatral João Luiz Fiani, responsável por cinco montagens teatrais de contos de Trevisan. Além da aversão à imprensa, Dalton também costuma mudar seu itinerário pelas ruas de Curitiba para não ser reconhecido durante caminhadas, compras e visitas a cafés e livrarias.

Observador e escritor incansável, fidelíssimo ao conto, elabora até a exaustão e com economia absoluta, “chuvinha renitente e criadeira”, suas histórias. Dalton Trevisan coloca em seus enredos, a capital paranaense e as gentes curitibanas ("curitibocas", vergasta-as com chibata impiedosa), com independência solene e temperamento singular. Em seus contos, realiza a construção e a dissecação da supra-realidade de luas, crianças, amantes, velhos, cachorros e vampiros. E polaquinhas, como em seu único romance publicado.

Quando era estudante de Direito (cursou a graduação na atual Universidade Federal do Paraná), Trevisan costumava lançar seus contos em modestos folhetos. Em 1945 lançou o livro "Sonata ao Luar" e, no ano seguinte, publicou "Sete Anos de Pastor". Mas ele renega os dois e não os inclui na sua bibliografia.

Ainda na década de 1940 (1946 a 1948) editou a revista "Joaquim" por dois anos. O nome, segundo ele, era "uma homenagem a todos os Joaquins do Brasil". A publicação tornou-se porta-voz de uma geração de escritores, críticos e poetas. Reunia ensaios assinados por Antonio Cândido, Mario de Andrade e Otto Maria Carpeaux e poemas até então inéditos, como "O Caso do Vestido", de Carlos Drummond de Andrade. A revista também trazia traduções de Joyce, Proust, Kafka, Sartre e Gide e era ilustrada por artistas como Poty, Di Cavalcanti e Heitor dos Prazeres.

Em 2003, Dalton foi agraciado com o Prêmio Telecom. Com a obra “Pico na veia” dividiu o primeiro lugar com o jornalista brasileiro Bernardo Carvalho. O livro é uma coletânea de duzentos contos curtos que apresentam os temas recorrentes de Dalton Trevisan: os desastres do amor, os infernos particulares, a guerra dos sexos, cenas da vida cotidiana e da condição humana. Um retrato da realidade do Brasil de hoje construído com ironia e humor.

Dalton Trevisan mais uma vez deu uma lição de estética literária com um bilhete curto, direto e definitivo, assim como o estilo de seus contos. Foi na entrega do Prêmio Portugal Telecom de Literatura 2007 em que Trevisan ficou com o segundo lugar e recebeu R$ 35 mil. O primeiro prêmio foi para angolano Gonçalo Tavares, com "Jerusalém" (R$ 100 mil para ele). A atração da noite e o que realmente prevaleceu foi a seguinte mensagem enviada por Dalton: "Só a obra interessa. O autor não vale o personagem. O conto é sempre melhor que o contista. Vampiro sim, de almas. Espião de corações solitários, escorpião de bote armado. Eis o contista. Só invente o vampiro que exista. Com sorte, você adivinha o que não sabe. Para escrever mil novos contos, a vida inteira é curta. Uma história nunca termina. Ela continua depois de você. Um escritor nunca se realiza. A obra é sempre inferior aos sonhos. Fazendo as contas percebe que negou o sonho, traiu a obra, cambiou a vida por nada. O melhor conto só se escreve com tua mão torta, teu avesso, teu coração danado. Todas as histórias, a mesma história, uma nova história. O conto não tem mais fim senão começo. Quem me dera o estilo do suicida em seu último bilhete.”

Ainda refletindo palavras do “vampiro de Curitiba”, escutemos atrás das portas para aprimorarmos nossa vivência: "O que não me contam, eu escuto atrás das portas. O que não sei, adivinho e, com sorte, você adivinha sempre o que, cedo ou tarde, acaba acontecendo."

“Escrevo para me manter viva” - Clarice Lispector

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


A professora de literatura canadense, Claire Varin, realizou estudos sobre a vida e a obra de Clarice Lispector e escreveu dois livros sobre a autora. Claire afirma que só é possível ler Clarice tomando seu lugar: sendo Clarice. "Não há outro caminho", garante ela. Para corroborar sua tese, Claire cita um trecho da crônica “A descoberta do mundo” em que a escritora diz: "O personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor, é o escritor."

Clarice nasceu na Ucrânia, em 10 de dezembro de 1920, em um pequeno vilarejo chamado Tchelchenik. Não se chamava Clarice, mas Haia Lispector. Era a terceira filha de Pinkouss e de Mania Lispector. Em fevereiro de 1922 toda a família vai para a Alemanha e, no porto de Hamburgo, embarcam no navio "Cuyaba" com destino ao Brasil. Chegam a Maceió em março desse ano, sendo recebidos por Zaina, irmã de Mania, e seu marido e primo José Rabin, que viabilizou a entrada da família no Brasil mediante uma "carta de chamada".

Por iniciativa de seu pai, à exceção de Tania - irmã, todos mudam de nome: o pai passa a se chamar Pedro; a mãe Mania, Marieta; a irmã Leia, Elisa; e Haia, Clarice. Pedro passa a trabalhar com Rabin, já um próspero comerciante. A mãe de Clarice morre quando ela tinha 10 anos. Inicia seus estudos na Faculdade Nacional de Direito, em 1939. Quatro anos mais tarde casa-se com o colega de faculdade, Maury Gurgel Valente e termina o curso de Direito. Seu marido, por concurso, ingressa na carreira diplomática.

Muda-se para Itália em 1944, em plena Segunda Guerra Mundial, onde o marido vai trabalhar. Já na saída do Brasil, Clarice mostra-se dividida entre a obrigação de acompanhar o marido e ter de deixar a família e os amigos. Quando chega à Itália, depois de um mês de viagem, escreve: "Na verdade não sei escrever cartas sobre viagens, na verdade nem mesmo sei viajar."

Em dezembro de 2007, em ocasião das homenagens aos 30 anos da morte de Clarice, Teresa Montero reuniu e publicou 120 cartas escritas pela escritora às irmãs. Inéditas, enviadas entre 1940 e 1957 para as irmãs Elisa Lispector e Tania Kaufmann, que então moravam no Rio de Janeiro. A maioria das cartas foi emitida por Clarice enquanto estava fora do país, acompanhando o marido diplomata. Segundo Montero, pela primeira vez é possível sondar, de maneira contínua, o dia-a-dia de Clarice: "Sabemos das suas dificuldades para publicar estando longe do Brasil, contando com a ajuda das irmãs. E também de suas idas a concertos, peças de teatro, museus, e ainda filmes que viu e escritores que a inspiraram, como Tolstói, Katherine Mansfield, Simone de Beauvoir, entre outros", conta Montero.

Mãe, Clarice Lispector divide seu tempo entre os filhos. Em 1948 nasce Pedro e em 1953, Paulo. Nasce, então, um complemento ao método de trabalho. Ela escreve com a máquina no colo, para cuidar dos filhos. Separa-se de Maury após 15 anos de casada e volta a morar no Brasil.

Um ano antes de sua morte, em 1977, o jornalista José Castello, do Jornal O Globo, entrevista Clarice:

J.C. "— Por que você escreve?”

C.L. "— Vou lhe responder com outra pergunta: — Por que você bebe água?"

J.C. "— Por que bebo água? Porque tenho sede."

C.L. "— Quer dizer que você bebe água para não morrer. Pois eu também: escrevo para me manter viva."

Nos muitos romances e contos, Clarice desenvolve narrativas que tratam da condição feminina, da dificuldade de relacionamento humano, da hipocrisia dos papéis socialmente definidos, da busca pelo “eu”. “Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas, continuarei a escrever”, afirmou certa vez Clarice.

Sua biobibliografia ganhou em 2008 uma nova contribuição. Foi lançada pela Imprensa Oficial, a fotobiografia da escritora Clarice Lispector organizada pela professora Nádia Batella Gotlib. O livro é composto por cerca de 800 imagens da vida da escritora, muitas delas inéditas, distribuídas em ordem cronológica, além de vários manuscritos compilados ao longo de mais de 650 páginas. Nela tem-se um pouco de Clarice que assim se define: “Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe ainda a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem um imaterial peso da solidão no meio de outros."

O contexto social da segunda geração modernista

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


O Modernismo representou uma ruptura profunda com os padrões artísticos da escola literária anterior, o Simbolismo. Inspirado pelas vanguardas européias no início do século XX, o Modernismo no Brasil inovou os temas e a linguagem das obras ao mesmo tempo em que afirmou nossa identidade. Sem idealizações, valorizou nossa cultura e denunciou nossas mazelas de modo contundente.

Dividido didaticamente em suas três gerações, o Modernismo brasileiro proporcionou novas perguntas e novas respostas para as grandes questões humanas. Produziu, também, algumas das melhores obras da nossa literatura, estimulado pelo contexto social turbulento. A primeira geração da poesia, a do nacionalismo crítico, a qual promovia a releitura do passado histórico do Brasil, é superada, e os autores da segunda geração passam-se dedicar à reflexão sobre o mundo contemporâneo, usando todos os recursos à disposição da criação poética, aproveitando as conquistas da primeira geração e outras ferramentas relacionadas à forma.

Pode-se dizer que durante certo tempo, a poesia das primeira e segunda gerações (de 1922 e 1930) conviveram. Não se trata, portanto, de uma sucessão brusca. A maioria dos poetas de 30 absorveria parte da experiência de 22: liberdade temática, gosto pela expressão atualizada ou inventiva, verso livre, anti-academicismo.

A poesia persegue a tarefa de purificação de meios e formas iniciada com a geração anterior, ampliando a temática na direção da inquietação filosófica e religiosa, com Vinícius de Moraes, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, ao tempo em que a prosa alargava a sua área de interesse para incluir preocupações novas de ordem política, social e econômica, humana e espiritual. Ao jocoso e ao irônico sucedeu a gravidade de espírito, a seriedade da alma, propósitos e meios. Uma geração grave, preocupada com o destino do homem e com as dores do mundo, pelos quais se considerava responsável, deu à época uma atividade excepcional.

A Segunda Guerra Mundial deixou como legado mais do que ruínas de cidades arrasadas por bombardeios. Ela obrigou a enfrentar a barbárie humana e a reconhecer que o preconceito e desejo desmedido pelo poder podem levar à perda de milhões de vidas. Em 1944, escreve Drummond: “Meus olhos são pequenos para ver / o mundo que se esvai em sujo e sangue”, expondo a reflexão sobre a perversidade de que o ser humano é capaz.

As bombas atômicas lançadas em agosto de 1945 pelos Estados Unidos contra as cidades japonesas de Nagasaki e Hiroxima, revelou a última fronteira da ética havia sido cruzada pela ciência: o ser humano havia descoberto uma forma eficiente de exterminar a própria raça. Assim, criou-se o contexto para que a arte assumisse uma perspectiva mais intimista e procurasse respostas para s muitas dúvidas existenciais desencadeadas por todo esse cenário de horror e de destruição.

A espiritualidade também vive um momento conflituoso, porque torna-se tão difícil compreender Deus – independentemente do nome que receba – quanto compreender a humanidade diante da cruel existência de bombas atômicas e campos de concentração. A análise do ser humano e de suas angústias, o desejo de compreender a relação entre o indivíduo e a sociedade da qual faz parte são os elementos recorrentes na poesia produzida na década de 1930 e 1940.

Enquanto a primeira geração modernista experimentou uma grande variedade de temas e de técnicas, a segunda é caracterizada por uma produção fortemente social. Assim o contexto sociopolítico define o foco para a poesia desse momento.

A publicação do livro “Alguma Poesia”, em 1930, de Carlos Drummond de Andrade, é considerada a referência do início da poesia da segunda geração do Modernismo brasileiro. Os críticos literários adotam o ano de 1945 como data do fim da poesia dessa geração, embora muitos dos escritores pertencentes a ela continuem a produzir.

Exposto ao pavor de duas grandes guerras, o ser humano vive tempos sombrios até meados do século XX e as indagações são latentes: o que significa estar no mundo? A esperança deve ser depositada nos indivíduos ou projetada na espiritualidade? Refletir sobre o sentido de estar no mundo é a proposta que define o projeto literário da poesia da segunda geração modernista.

Drummond: o poeta do “sentimento do mundo”

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


No início do poema “Mãos dadas” o eu-lírico drummondiano afirma: "Não serei o poeta de um mundo caduco. / Também não cantarei o mundo futuro". E no final do mesmo poema, complementa: “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.” Desinteressado do passado (o mundo caduco) ou do futuro, esse poema anuncia o compromisso do poeta com os semelhantes. É a face social de Drummond se revelando.

A temática social, resultante de uma visão dolorosa e penetrante da realidade, predomina em Sentimento do mundo (1940) e A rosa do povo (1945), obras que não fogem a uma tendência observável em todo o mundo, na época: a literatura comprometida com a denúncia da ascensão do nazi-fascismo. A consciência do tenso momento histórico produz a indagação filosófica sobre o sentido da vida, pergunta para a qual o poeta encontra, muitas vezes, respostas pessimistas.

O passado ressurge inúmeras vezes como antítese para a realidade presente. Nos primeiros livros, a ironia predominava na observação desse passado; mais tarde, o que vale são as impressões gravadas na memória. Transformar essas impressões em poemas significa reinterpretar o passado com novos olhos. O tom agora é afetuoso, não mais irônico, como no poema “Infância”.

Mineiro de Itabira, nascido em 1902, Carlos Drummond de Andrade se arma com as palavras para denunciar a opressão e lutar pela construção de um mundo menos egoísta. Poetisa o amor, a infância, o “estar no mundo”, a família, as dificuldades de compreender os sentimentos, o fazer poético, o “mundo mundo vasto mundo”, conforme expressa no poema “E agora, José ?”.

Nono filho de um fazendeiro, Drummond foi expulso de um colégio de padres jesuítas, no Rio de Janeiro, acusado de “insubordinação mental”. E o caráter questionador do poeta, jamais foi amainado. Em 1928, o polêmico poema “No meio do caminho” foi publicado nas páginas da revista Antropofagia e suscitou grande controvérsia. De um lado, os modernistas o reconheciam como uma manifestação significativa dos novos valores estéticos. Do outro, a opinião pública via o poema como uma síntese do desrespeito da nova geração de poetas em relação à “boa” literatura.

Durante boa parte da vida, Drummond conciliou sua atuação como funcionário público com a intensa criação literária. Além dos trinta livros de poesia, tem livros três livros infantis publicados e dezenove de prosa. Farmacêutico de formação, foi chefe do gabinete do Ministro da Educação entre 1934 e 1945, ano em que passou a trabalhar no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Até a década 1950, Drummond era conhecido apenas como poeta, apesar de já ter publicado o livro em prosa “Confissões de Minas”, em 1944. A obra “Contos de Aprendiz” chama a atenção da crítica para o Drummond ficcionista. As crônicas aparecem nos jornais, enquanto poemas e contos eram publicados em obras. Com a aposentadoria em 1962, a produção do escritor se intensifica.

Em 1987, a vida de Carlos Drummond de Andrade foi abalada pela morte da filha, Maria Julieta. No velório, muito abatido, o poeta comentou que começava ali a destruição da família Andrade. Exatos 12 dias mais tarde, o desolado coração do pai Carlos, parou de bater.

Depois da morte de Drummond, reuniu-se no livro “O amor natural” (1992) uma série de poemas eróticos mantidos em sigilo e que foram associados a um suposto caso extraconjugal mantido pelo poeta. Verdadeiro ou não o caso, o importante é que se trata de poemas bem audaciosos, em que se explora o aspecto físico do amor. Alguns enxergarão pornografia nestes poemas; outros, o erotismo transformado em linguagem poética da alta qualidade.

Toda a trajetória do poeta - qualquer que seja o assunto tratado – sobressai a tentativa de conhecer a si mesmo e aos outros homens, através da volta ao passado, da adesão ao presente e da projeção num futuro possível.

Didaticamente, a obra de Carlos Drummond de Andrade é classificada como pertencente ao segundo tempo modernista. Porém, os mais de sessenta anos de escrita drummondiana ultrapassam classificações. A questão principal de suas obras reflete: “Quanto vale o homem? / Menos, mais que o peso? / Hoje mais que ontem? Vale menos, velho? / Vale menos, morto? / Menos um que outro, / se o valor do homem /é medida de homem?”. Mergulhar no universo drummondiano é fazer um exame de auto-conhecimento. Vale conferir!

quarta-feira, 6 de maio de 2009

“Lucíola”: o amor de uma cortesã

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


O romance urbano ou de costumes, o romance histórico e o romance regionalista, são subdivisões da ficção romântica. No Brasil, o único autor a compor enredos privilegiando todas as tendências foi José de Alencar. Filho de ex-padre com a prima, Alencar seguiu os passos diplomáticos de seu progenitor. Uma viagem feita com este, aos nove anos de idade, produziu no autor romântico impressões marcantes, sobretudo as paisagens vistas, e que mais tarde foram retratadas em seus inúmeros romances.

Além de seguir os passos do pai na carreira política, Alencar obteve grande êxito como escritor, sendo reconhecido ainda em vida pela imaginação fértil, acumulando sucessos com as narrativas publicadas nos folhetins brasileiros do século XIX. Em “Como e porque sou romancista”, o autor conta que o estímulo para a criação literária veio dos romancistas franceses e do sucesso alcançado pelo brasileiro Joaquim Manuel de Macedo com “A Moreninha”. Em suas palavras: “Que estranho sentir não despertava em meu coração adolescente a notícia dessas homenagens de admiração e respeito tributados ao jovem autor d’A Moreninha! Qual régio diadema valia essa auréola de entusiasmo a cingir o nome de um escritor?”

“Lucíola” faz parte da trilogia “perfis de mulher” junto às obras “Diva” e “Senhora”, escrita pelo autor instigado com o sucesso de Macedo. Assim como os dois últimos, “Lucíola” também é um romance urbano. Como nas outras, esta ficção não se limita a contar uma história romântica. Ela apresenta uma estrutura pensada minuciosamente para conduzir o olhar do leitor a examinar mais detidamente alguns comportamentos que merecem análise e reflexão. Com tal ação, Alencar promove uma verdadeira crítica aos costumes de sua época.

Em “Lucíola”, Maria da Glória é exemplo de recato e pureza, até que as necessidades familiares a transformam na cortesã Lúcia, a prostituta mais procurada da casa noturna em que trabalha. Esse gesto de degradação moral tem uma função nobre: ajudar a família pobre vítima de febre amarela.

Ela era uma menina feliz de 14 anos e morava com os pais, quando, em 1850, sobreveio a terrível febre. Seus pais, os três irmãos, uma tia caíram de cama. Apenas ela ficou imune. No auge do desespero, resolveu pedir ajuda a um vizinho rico, Sr. Couto, que em troca de algumas moedas de ouro tirou-lhe a inocência. Nas palavras da jovem, "o dinheiro ganho com a minha vergonha salvou a vida de meu pai e trouxe-nos um raio de esperança."

Porém, seu pai sabendo da origem do dinheiro, e supondo ter a filha um amante, a expulsou de casa. Sozinha, sem ter aonde ir, foi acolhida por uma mulher, Jesuína, que, quinze dias depois, conduziu-a à prostituição, estipulando pela beleza de seu corpo um alto preço. O dinheiro, ela o usava para cuidar do que restava da família: "e eu tive o supremo alívio de comprar com a minha desgraça a vida de meus pais e de minha irmã".

Lúcia conhece Paulo, um jovem pernambucano, que chega no Rio de Janeiro em 1855. Ambos se apaixonam. A protagonista larga a vida noturna para viver esse amor. O pernambucano sente-se humilhado porque Lúcia abandonou todos os outros amantes para manter-se fiel somente a ele. Fraco, teme que a sociedade o imagine sustentado pela meretriz. Ela já não vibra como outrora, mesmo quando excitada por Paulo. É a doença que já se faz sentir. Paulo não entende essa frieza e por vezes se exaspera. Ela sofre calada, pois reconhece que "o amor para uma mulher como eu seria a mais terrível punição que Deus poderia infligir-lhe!". O grande sentimento que os unia, arrefece, dando lugar a uma amizade simplesmente.

O comportamento de Lúcia é cada vez mais sublime e heróico. Já não existe mais nada da antiga cortesã. E Paulo, por fim, entende essa nobreza de caráter e compreende o porquê das suas recusas após ouvir dela sua fatídica história. Ela lhe recusava o corpo porque o amava em espírito. E também porque já está doente. Paulo promete respeitá-la dali em diante.

Seguem-se dias tranqüilos. Lúcia muda-se para uma casinha modesta com sua irmã Ana. A tranqüilidade e felicidade são vistas por ela como algo impensável, já que nunca tivera: "isto não pode durar muito! É impossível!". É o pressentimento da morte. Lúcia tenta convencer Paulo a se casar com Ana, que já o ama também. Ele rejeita em nome do amor que sente por ela.

Lúcia aborta o filho que esperava de Paulo. Ela se recusa a tomar remédio para expelir o feto morto, dizendo "Sua mãe lhe servirá de túmulo". E já no leito de morte, recebe o juramento de Paulo prometendo-lhe cuidar de Ana como sua filha. E morre docemente nos braços de seu amado, indo amá-lo por toda a eternidade.

É assim que o romance urbano ou de costumes, a pretexto de contar história de amor, consolida o projeto literário romântico de divulgar valores morais e criar um espelho no qual o público burguês possa ver sua face refletida. Alencar escandalizou a sociedade de sua época com o romance, provocando reflexões e furor.