segunda-feira, 24 de agosto de 2009

“Os Cus de Judas”: a impotência diante de barbaridades inevitáveis

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


O escritor António Lobo Antunes nasceu em 1942, em Lisboa, na região de Benfica, onde cresceu. Formado em Medicina e especialista em psiquiatria, foi convocado para o exército português e serviu na guerra colonial em Angola. Em 1979 um fato marcaria sua trajetória profissional ao publicar seus dois primeiros romances, “Memória de Elefante” e “Os Cus de Judas”. Sucesso de crítica e público, Antunes abandona a Medicina e dedica-se integralmente à carreira de escritor.

“Os Cus de Judas” tem como tema principal a guerra da independência de Angola e os impactos desse conflito tanto do ponto de vista do colonizado como do colonizador. O autor prioriza a análise psicológica, revelando as seqüelas traumáticas originadas pela experiência que o narrador teve no campo de batalha, em que tudo era motivo de horror e de indignação, culminando com a incapacidade de adaptação para uma vida normal.

O livro é dividido em 23 capítulos, cada um nomeado com uma letra do alfabeto. O narrador se identifica como médico, fala com uma garota que ele acabou de conhecer num bar de Lisboa. O assunto principal são as memórias dele. O leitor, então, é transportado para o passado no qual o protagonista relembra o tempo em que exerceu a medicina, servindo no exército, durante 27 meses, nas linhas de combate em Angola, entre 1960 e 1970.

O período é também conturbado na terra natal do narrador, Portugal, ainda sob a ditadura de Salazar, nação que resistia ao processo de descolonização da África, ocorrido a partir da II Guerra Mundial.

Enquanto bebe, o narrador-personagem revela suas experiências. Não raramente, confunde o leitor, pela narração ininterrupta, fragmentada, muitas vezes desprovida de pontuação, o que caracteriza o fluxo de consciência. A opção do autor por esse estilo é consciente e, habilmente, construída, pois retrata de forma verossímil o estado em que o protagonista se encontra: ébrio, amargurado, desiludido.

O relato feito sobre a guerra é marcado pela crise psicológica, que se manifesta por meio de indagações filosóficas, pelo pessimismo, pelas observações irônicas, pela indignação e revolta, que vão acentuando conforme a noite avança e o narrador vai se embriagando ainda mais.

As lembranças desse médico são freqüentemente interrompidas por digressões, muitas vezes revelando o conflito existencial. A infância é retratada com um misto de tristeza e nostalgia. Em tom semelhante, o narrador descreve a casa dos pais com características tradicionais, com antepassados militares, aprendendo a valorizar as instituições como o Estado, a igreja e a família.

O discurso ideológico oco e hipócrita é assimilado em toda a sua infância, sobretudo através de suas tias idosas, que não cessam de censurá-lo: “estás magro (...) Felizmente que a tropa há-de torná-lo um homem”.

Chega o alistamento, e com ele, as visitas dominicais da família e a perda de identidade. Pouco depois, o temido momento do embarque para Angola, para o Cus de Judas. Momentos antes da viagem, o narrador-personagem chora no banheiro. A infância novamente evocada para suprir a ausência de amigos.

Na capital, Luanda, a miséria extrema, fruto da colonização portuguesa, desperta a revolta do narrador. Incapaz de se recuperar do trauma causado pelos horrores que presenciou, acaba sofrendo de incurável niilismo.

As reminiscências da guerra são pesarosas. A guerra associada a doenças e a excrementos, era contrastada pelas confidências sexuais do tenente com a criada, assim como as próprias escapadas com garotas sujas que viviam em barracos da região.

Além da presença de um inimigo feroz, o Movimento pela Libertação de Angola (MPLA), o narrador também se lembra da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (Pide), formada por agentes de repressão do Estado Novo de Salazar, que, de forma cruel, obrigavam os prisioneiros a cavar a própria cova para depois os executar.

A ilusão de ser escritor é substituída pela rotina de sobrevoar os campos de batalha em busca de feridos para tratar, acompanhado por um enfermeiro desbocado que tinha aversão a sangue. Confessa à sua acompanhante que é incapaz de protestar sua revolta, pois é um fraco, inclusive não tendo participado de uma rebelião em sua tropa, ao contrário de um superior que impediu até mesmo o estupro de uma camponesa angolana por um soldado.

O primeiro romance sobre o conflito e a independência angolana é uma referência histórica quase obrigatória. A tragédia colonial é retratada do ponto de vista da impotência do ser humano diante da violência e do desrespeito aos valores sociais e morais que abalam o sentido da vida, apresentando contradições e sentimentos, emoções e angústia que revelam toda a fragilidade da alma diante de um quadro inóspito: “(...) eu perguntava ao capitão o que fizeram ao meu povo, o que fizeram de nós aqui sentados à espera nesta paisagem sem mar (...) numa terra que não nos pertence, a morrer de paludismo e balas (...) de emboscadas e de minas, lutando contra um inimigo invisível, contra os dias que não se sucedem e indefinidamente se alongam, contra a saudade, a indignação e o remorso (...)”.

Composições de Lygia Fagundes Telles

Geórgia Pereira, Acadêmica de Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina - UEL.


Maestrina ao abordar os sentimentos humanos, Lygia Fagundes Telles revela o interior de seus personagens como uma música: compõe as melodias doces no andamento adágio, quando quer ser lenta e minuciosa nos seus detalhes descritivos; allegro quando quer revelar sensações de felicidade e êxtase interior de suas figuras; ou andante, bem compassado, que inebria e prende o leitor até o final de suas narrativas. “Apertou os maxilares nua contração dolorosa. Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu – conhecia tudo tão bem, mas tão bem! Quase sentia nas narinas o perfume dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmido da madrugada, ah, essa madrugada”! Este é um trecho do conto “A caçada”, no qual a escritora suscita a expectativa do leitor até o final do texto, tecendo as inquietações da mente do personagem e conquistando quem lê.

Com o dom de grandes composições literárias e regendo a palavra com tamanha sabedoria, Lygia só poderia ser destaque no mundo das letras. A construção de sua carreira começou em 1938 com a publicação de seu primeiro livro de contos, “Porão e Sobrado”. Tal obra foi incentivada pelo pai, influente advogado do interior paulista. Nascida em São Paulo em 19 de abril de 1923, Lygia Fagundes Telles é filha de Durval de Azevedo Fagundes e Maria do Rosário Silva Jardim de Moura. Graduada em Educação Física e Direto, Lygia teve o primeiro contato íntimo com a literatura durante a faculdade, no início dos anos 40. Nessa época ela conheceu ícones como Mário e Oswald de Andrade, além de se aproximar de uma pessoa que se tornaria sua grande amiga, a poetisa Hilda Hilst. Ainda durante esta década, escreve dois livros de contos: “Praia Viva” e “O cacto Vermelho”.

Anos mais tarde, já pelos idos de 50, Lygia assinala sua transição para uma produção literária mais rica e madura, escrevendo o romance “Ciranda de Pedra” publicada em 1954, que inspirou a primeira versão da novela em 1981, e a atual que recebe o mesmo nome. Durante a década de 60, a escritora publica mais um de seus romances, “Verão no Aquário”, e é nomeada procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo.

A famosa obra “Antes do Baile Verde” é a reunião de contos escritos entre os anos de 1949 e 1969, mas publicados somente em 1970. A diferença temporal entre eles, esclarece o crescimento da autora e do seu texto ao longo desses 20 anos. O conto, que dá título à obra, ganhou o Prêmio Internacional Feminino para Estrangeiros e revela a postura de Talisa, uma jovem que vai à um baile de carnaval, e deixa o pai em casa a beira da morte. A escritora escancara neste conto a mediocridade do ser humano, que não se compadece com a dor e só pensa em satisfazer os seus prazeres.

Em 1977 Lygia publica outra referência para seu cabedal literário, a coletânea de contos “Seminário dos Ratos”. A obra carrega traços inconfundíveis da literatura fantástica, como o conto “As Formigas” que fala da história inusitada de um esqueleto emoldurado por formigas num quarto de pensão. O conto-título da obra também comprova a composição harmônica da autora para revelar o mundo camuflado da podridão política e burocrática.

Em 1985, Lygia Fagundes Telles é eleita como membro da Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira 16, fundada por Gregório de Mattos. Mais recentemente, conquistou o Prêmio Camões, um dos mais importantes da literatura portuguesa brasileira.

Lygia é uma das peças referenciais para a Literatura Brasileira. Com a ousadia de uma escrita intimista e ao mesmo tempo reveladora, ela compôs dez livros de contos, quatro romances, um livro de memórias e um roteiro de cinema, mostrando a pluralidade do seu trabalho e a habilidade quando o assunto é a palavra.

Antes dele se pôr

Geórgia Pereira, Acadêmica de Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina - UEL.


“Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar e te mostrarei o pôr-do-sol mais lindo do mundo”. É com esse discurso que Ricardo começa a convencer Raquel e entrar naquele velho cemitério abandonado. Ambos são personagens do conto “Venha ver o pôr do sol”, de Lygia Fagundes Telles.

Ricardo marca o encontro num lugar onde eles possam ficar a sós. Ao chegar no local, a jovem rejeita a idéia, acha o local sinistro e fica resistente, não querendo entrar no cemitério. Mas Ricardo convence que aquele encontro era importante para ele, talvez o último que eles teriam, e ela acaba cedendo ao poder de convencimento do rapaz.

Ela estava comprometida com outro homem, mais rico que Ricardo. Agora, Raquel era uma mulher que havia deixado de usar “sapatões sete léguas” e passou a usar saltos, fumando “cigarrinhos pilantras”. A jovem teria mudado seu estilo e comportamento em função do novo relacionamento e sabia que isso incomodava Ricardo, que não tinha as mesmas condições financeiras para satisfazer sua amada.

No desenrolar do conto, Lygia Fagundes Telles dá pistas da conduta de Ricardo e o que ele planeja fazer com Raquel. “Ele apanhou um pedregulho e fechou-a na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor de seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente ficou envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram” Neste trecho, a autora revela o preparo do jovem em guardar a pequena pedra que ele usaria logo depois. Ao pensar no seu ato, sua aparência se altera, ficando com feição de pessoa má.

Após entrarem no cemitério eles relembram fatos passados, do tempo que existia amor entre eles. Esse resgate permite uma maior aproximação da vítima, tocando-a pelo sentimentalismo. Conduta similar no assassino que deseja envolver a vítima. Mas no próximo diálogo ele anuncia o que seria uma morte perfeita “nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer”. Aqui Ricardo apresenta seu desejo de morte para Raquel. Apesar disso, o narrador, que é em terceira pessoa, não mostra que ela tenha percebido a dimensão de tal comentário, pois a jovem jamais julgou a crueldade que seu ex-namorado pudesse ter e se mostra, em alguns momentos, até mesmo ingênua.

As descrições feita pela autora permitem que o leitor entre no cenário apresentado. A riqueza de detalhes revela a capacidade de representar o local de forma muito próxima e favorecer a interação entre a obra e o leitor. “O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrava-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos enegrecidos como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte”. Tal descrição confirma a intenção do conto de camuflar a morte, apagar todas as marcas e torná-la lenta e silenciosa, assim como foi a de Raquel.

Durante a narrativa, Ricardo sempre se refere ao túmulo onde supostamente estaria sua família como “meus mortos”, “minha gente”. Apenas em um momento ele usa a palavra mãe, mas família nunca. Essa escolha sugere que ele possa ter assassinado mais pessoas, além de Raquel.

Dentro do jazigo, o conto atinge seu clímax. Ricardo readquire sua feição de malvado, com sorriso sarcástico, usando palavras doces e suaves, que ressaltam seu papel de vingador. O rapaz vai brincando com ela e reafirmando que ainda verá o pôr-do-sol, mas ela percebe que o encontro tinha outra intenção e o medo assola sua mente. Ele tranca a jovem no jazigo, e mesmo implorando para soltá-la, Ricardo não tem piedade alguma, pois tem a certeza que “nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado.” Ele vai embora, como se nada tivesse acontecido.

Este ato cruel é a forma doce da vingança que Ricardo encontrou para satisfazer seu orgulho, e esconder a rejeição que ele sentiu quando Raquel se envolveu em outro caso. Lygia aborda a crueldade humana de forma sutil e mostra que o homem interpreta o personagem que ele quiser, no momento que lhe for conveniente. É uma metamorfose velada que acontece a todo instante.

O conto fascina pelo modo de sua construção, com descrições ricas recriando o espaço no imaginário do leitor aliado as pequenas transformações sofridas pelos personagens que são justificadas no final da história. Mergulhar nesse universo apresentado por Lygia Fagundes Telles é ainda mais interessante quando acontece lentamente, se permitindo ser desvendado por ela e deixar que ela mostre a realidade camuflada pelas palavras.

O contexto histórico do Realismo literário

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


Riqueza e miséria, crescimento desordenado dos centros urbanos, mudança radical nos meios de transporte e comunicação, grande avanços científicos. A Revolução Industrial transformou a face da Europa e trouxe consigo a urgência de uma nova estética, capaz de refletir esse processo. O Realismo nasce para responder a essa necessidade.


* Um paradoxo capitalista: desenvolvimento e miséria

Em 1800 a população da Europa chegava a 190 milhões de pessoas. Cem anos mais tarde, 460 milhões. Esses números traduzem uma evidente expansão de mercado e do trabalho. Como o declínio dos tipos tradicionais de lavoura e o uso das máquinas, os camponeses foram expulsos do interior e iam para as cidades em busca de emprego nas indústrias e fábricas. Mesmo os grandes centros, como Londres e Paris, não contavam com uma infra-estrutura adequada para absorver um crescimento populacional tão grande. Logo começaram a enfrentar problemas graves, como as epidemias. Nesse contexto de pobreza crescente, a mendicância e a prostituição tornaram-se subprodutos indesejáveis e degradantes da sociedade.


* Novas doutrinas sociais

As transformações sociais exigiam novas maneiras de explicar a organização de mundo capitalista. Diferentes doutrinas surgiram para responder a esse desafio. O inglês Adam Smith acreditava que, uma vez removidas todas as restrições ao comércio e ao capital, o desenvolvimento econômico aconteceria de modo natural. Para ele, um Estado liberalista tinha a função de preservar a lei, manter a ordem e defender a nação. A proposta do liberalismo da não-intervenção estatal da economia foi associada a uma expressão francesa, laissez-faire, que pode ser traduzida como “deixar passar”.

O economista Thomas Malthus afirmava que a pobreza era uma espécie de lei natural, ainda que cruel. Para ele, o descompasso entre o crescimento populacional e a produção de alimentos gerava um estado de pobreza permanente e inevitável. Com base nessa justificativa “científica”, alguns setores da sociedade passaram a condenar ações governamentais que tivessem como objetivo ajudar os pobres.

Karl Marx, interessado pelos processos históricos, procurou identificar, no estudo das relações de trabalho e de produção, fatores que determinavam as condições de vida de seus contemporâneos. Juntamente com Friedrich Engels, Marx lançou o “Manifesto Comunista”, em 1848, obra a qual afirmava que o sistema capitalista oprimia as pessoas e as condenava à miséria. Segundo eles, o capitalismo condenava o proletário à pobreza porque a classe de maior poder econômico – a burguesia – também controlava o Estado, valendo-se de seu poder político para explorar trabalhadores e aumentar suas propriedades. Acreditavam q a sociedade resultante da revolta do proletário seria mais igualitária. As pessoas, livres, trabalhariam em conjunto pelo bem comum. Era esse o sonho comunista que prometia uma vida mais digna e justa para todos os cidadãos.


Realismo: a sociedade no centro da obra literária

A realidade das máquinas, dos transportes e das novas teorias sociais torna inviável a visão de mundo romântica, que projetava o indivíduo e seus dramas sentimentais o centro do universo. Os artistas, como pessoas do seu tempo, procuraram um novo parâmetro de interpretação da realidade. Foi assim que a objetividade ocupou o lugar do subjetivismo romântico e a valorização desmedida da emoção foi abandonada. Em lugar de tratar dos dramas individuais o olhar realista focalizará a sociedade e os comportamentos coletivos. Como estética literária, o Realismo procura analisar a nova organização social e econômica, detectando suas causas e denunciando suas conseqüências.

Os objetivos que norteiam toda a literatura realista: produzir, por meio da arte, uma representação da realidade que permita condenar o que há de mau na sociedade. O desejo de pintar a anatomia do caráter humano se explica pela necessidade de compreender a origem de práticas e comportamentos sociais negativos. Para fazer essa análise, os escritores realistas adotarão a razão e a objetividade como lentes através das quais observam a realidade. O que revelam é uma burguesia hipócrita e fútil, que explora o proletariado enquanto professa o amor à justiça e à igualdade. Esse comportamento será denunciado em boa parte dos romances escritos nesse período.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Maria Moura: “Mulhê-macho, sim, sinhô”!

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


O romance “Memorial de Maria Moura”, escrito pela cearense Rachel de Queiroz e publicado em 1992, tem três narradores e, além da protagonista que dá título à obra, possui histórias paralelas, todas passadas em meados do século XIX. Uma versão é contada pelo padre José Maria que adota o nome de Beato Romano e depois sabe-se o porquê da mudança. Versão diversa é dada por Marialva, mulher do saltimbanco Valentim, jagunço fiel à prima da esposa, Maria Moura. A outra história é contada pela moça que incendiou sua casa e virou a vaqueira mais temida da região.

No início da narrativa, fica-se conhecendo a jovem Maria Moura, aos 17 anos, que encontra a mãe morta enforcada com o cordão de uma rede, o que, num primeiro momento parece ter sido suicídio. A moça, que é órfã de pai desde a infância, passa a ser criada pelo padrasto, Liberato, que a seduz e transforma-a em amante. O padrasto tenta induzir Maria a assinar documentos que passam a ele a propriedade deixada pelo pai. Diante da recusa Liberato faz ameaças e insinua que, na verdade, a mãe de Maria não se suicidou, mas foi morta por ele. O fato se confirma no desenrolar da história.

Maria Moura aos poucos vai perdendo o medo e decide matar Liberato. Contudo, apesar de tornar-se, ao longo da narrativa, uma mulher muitas vezes fria e impiedosa, ela não havia matado ninguém até então. “Não sei bem se sou capaz de ver sangue derramado. Nunca experimentei ver de perto o sangue dos outros; e pior será se for tirado pela minha mão.”

Para vingar a morte da mãe, Maria Moura seduz um caboclo, Jardilino, e convenço-o a matar o padrasto sob a promessa de casarem-se. Sentindo-se acuada pela insistência de Jardilino em possuí-la, ela induz o feitor de sua propriedade – seu fiel criado – a matar o caboclo impertinente.

Vivendo na fazenda O Limoeiro, herança do pai, a propriedade passa a ser alvo da cobiça dos primos, Irineu e Tonho, e da mulher deste último. Após a recusa de Maria, os primos apelam à justiça e à força e o que conseguem é a resistência da prima, a qual encontra capangas para defender a casa. Depois da troca de tiros, Maria percebe que a inferioridade numérica e a falta de munição seria fatal para ela e seu grupo, então, toma uma decisão radical: incendeia sua residência enquanto foge com seus homens.

Ao deixar as terras do Limoeiro, Maria Moura e seus homens vagam pelo sertão, sem abrigo, com pouca água, passando privações, repartindo parcos alimentos que conseguiam. Acatando a liderança de Maria, o bando começa, aos poucos, a se organizar e se prover de montagem, alimentos e armas.

O grupo vive aventuras e desventuras seduzido pelo ouro, e começa a praticar roubos, vivendo desregradamente. O bando acaba se estabelecendo numa propriedade próxima à Lagoa do Socorro. Reaparece, então, o padre José Maria sob o nome de Beato Romano. Sua história vem à tona. Na última paróquia em que trabalhou, não resistiu ao pecado da carne e teve um caso com Isabel, esposa de Anacleto. Este descobre a gravidez da mulher e a mata a facadas. O padre o golpeia com um móvel, matando o assassino da amante e tornando-se ele um assassino fugitivo.

Paralelamente aos enredos de Maria Moura e Beato Romano, conhece-se a história de Marialva e Valentim. Ela é prima de Maria, mas ao contrário dos irmãos Tonho e Irineu, não se interessa pela herança da protagonista. Apaixonada pelo circense Valentim, ela foge da árdua vida impingida pelos irmãos e vai viver esse amor protegido pela prima que acolhe o casal e faz do circense seu aliado.

Maria Moura cada vez mais se torna autoconfiante, ousada e ambiciosa. Sabendo que comerciantes andavam pela região com grande soma em dinheiro para aquisição de gado, ela prepara as armas para a aventura insana. Prevendo um eventual fracasso, apronta um testamento deixando seus bens para Alexandre, filho de Marialva e Valentim, já que ela não possui herdeiro natural.

Após os preparativos para a partida, o grupo pede à Maria que o Beato Romano os acompanhe. Ela desconfia que a fé incutida pelo ex-padre nos seus capangas não seja útil em dia de conflito. Além da presença de Romano, o tom da voz de seus homens lhe pareceu um agouro. No entanto, Rachel de Queiroz deixa em aberto o destino das personagens, desafiadas sempre pelas adversidades do meio, divididas entre o crime e o remorso, e antes de tudo, sobreviventes do sertão agreste.

Em uma sociedade marcada pelo poder masculino, branco e rico, Maria Moura, a despeito de sua condição de mulher, eleva-se dentre outros inferiorizados e desafia o patriarcalismo. Mulher corajosa e destemida, através de seus homens de confiança, tocaias, moitas, justiças e injustiças, cria um mundo de regras próprias.

“Memorial de Maria Moura” é um romance que traz um retrato sem retoques de algumas relações sociais, culturais, morais, afetivas entre personagens sábias e comovidamente delineadas.

A construção da obra Memorial de Maria Moura

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


A obra “Memorial de Maria de Moura”, de 1992, é o último livro produzido pela escritora cearense Rachel de Queiroz, a primeira mulher a ser eleita à Academia Brasileira de Letras. O romance narra, entre outras histórias, a da protagonista que dá título à obra. Órfã, Maria Moura entra em atrito com os primos pela disputa de herança de terra. Cercada pelos parentes, que pretendiam seqüestrá-la e tomar suas posses, a moça incendeia a própria casa e sai pelos fundos, fugindo com pouca bagagem e um ou outro “cabra” fiel.

De moça sozinha no mundo à líder de um bando de jagunços do sertão brasileiro, o enredo se passa em meados do século XIX, lá pelos idos de 1850. A narração do livro assemelha-se à maneira de uma telenovela. Tanto é que a obra foi adaptada para a televisão, em forma de minissérie, dois anos após sua publicação.

O livro, em primeiro momento, pode intimidar o leitor, pois possui 500 páginas. Contudo, a estrutura narrativa lembra o formato do antigo folhetim, que tinha capítulos não muito longos, impregnados de ação, conflito amoroso e tensão constante entre as personagens, pode seduzir o público. Outro fator que pode chamar a atenção do leitor é a linguagem simples e direta que busca reproduzir a fala do sertanejo, bem como retratar a cultura popular. Tal característica permite a leitura rápida.

A dedicatória do livro é dirigida, entre outros, à Elizabeth I, rainha da Inglaterra entre 1558 e 1603, que, segundo Rachel de Queiroz, serviu de inspiração para a criação de Maria Moura, pelo caráter forte e pela liderança nata.

Elizabeth, em discurso às tropas inglesas que enfrentariam a Invencível Armada Espanhola, disse: “Sei que tenho o corpo de uma mulher fraca e frágil; mas tenho também o coração e o estômago de um rei – e de um rei da Inglaterra”. E Maria Moura em um dos seus discursos, argumenta: “Nunca se viu mulher resistindo à força contra soldado. Mulher, pra homem (...) só serve para dar faniquito. Pois, comigo eles vão ver. E, se eu sinto que perco a parada, vou-me embora com meus homens, mas me retiro atirando. E deixo um estrago feio atrás de mim. (...) prá ninguém mais querer botar o pé no meu pescoço.”

Na obra são retomados alguns dos temas básicos de Rachel de Queiroz: o Nordeste problemático, a preocupação social, as figuras femininas singulares. Misturam-se na narrativa todas as forças e fraquezas, todas as virtudes e defeitos da condição humana, desde o amor ao ódio, desde o crime ao remorso.

Ao contrário da narração tradicional, temos em “Memorial de Maria Moura”, a presença de múltiplas vozes, o que caracteriza a polifonia, ou seja, a história é contada do ponto de vista de mais de uma personagem. A dinâmica entre os três narradores torna a obra envolvente, e não se pode dizer que o livro traz uma história apenas: são pelo menos três. No eixo central tem-se Maria Moura e os primos, Tonho e Irineu, com os quais ela disputa a herança. Como núcleos paralelos e secundários, têm-se o conflito do padre José Maria que abandona a batina e torna-se o Beato Romano. O terceiro núcleo foca o casal Marialva e Valentim, e a vida de ambos no circo em trabalha.

O enredo é fragmentado, quebrando a linearidade, emaranhando as ações de diversas personagens, revelando o passado delas por meio de vários “flashbacks”. As três versões acabam se juntando e entrelaçadas, formam um painel de nordestinidade que a Rachel soube trabalhar muito bem.

Sobre a criação desse livro, Rachel de Queiroz contou: “Eu estava fazendo um trabalho com minha irmã Maria Luíza sobre a seca do Nordeste. Fomos procurar livros antigos e descobrimos que a primeira grande seca registrada oficialmente aconteceu em Pernambuco em 1602. Nessa seca, uma mulher chamada Maria de Oliveira tornou-se conhecida, porque, juntamente com os filhos e uns cabras, saiu assaltando fazendas. Pois eu fiquei com essa mulher na cabeça. Uma mulher que saía com os filhos e um bando de homens assaltando fazendas era a Lampiona da época, pensei. Ao mesmo tempo, eu sempre admirei muito a Rainha Elisabeth I da Inglaterra, que morreu no início do século XVII. Li várias biografias dela, a ponto de me sentir uma espécie de amiga íntima, dessas que conhecem todos os pensamentos e sofrimentos. A certa altura, pensei: ‘Essas mulheres se parecem de algum modo’. E comecei a misturar as duas. Estava pronto o esqueleto do romance. A partir daí fui desenvolvendo os episódios.”

Na próxima edição da coluna, o enredo da “mulhê-macho”, criada por Rachel de Queiroz.

Rachel de Queiroz: a primeira escritora “imortal”

Claudiana Soerensen, Mestre em Estudos Literários pela UFPR, Especialista em História do Brasil, Graduada em História e em Letras.


Única mulher a figurar entre os romancistas da geração de 1930, Rachel de Queiroz (1910 - 2003) era prima de José de Alencar pela genealogia materna. Cedo manifestou a paixão por livros. Costumava contar que leu “Ubirajara”, obra do primo célebre, aos cinco anos: “obviamente sem entender nada”.

A vida escaldante no nordeste brasileiro fez a família Queiroz fugir do Ceará. A face cruel da seca revelou-se para a menina Rachel em 1915, então com cinco anos. O episódio ficou gravado na memória da pequena e anos mais tarde tornou-se a base para a construção do romance “O Quinze”.

As circunstâncias que a levaram a escrever seu primeiro livro, um dos mais importantes, são curiosas. Padecendo de uma séria congestão pulmonar, com suspeita de tuberculose, a jovem de dezenove anos tinha que se submeter a um rígido tratamento. A mãe obrigava Rachel deitar-se cedo, antes das 21 horas. Como ela não tinha sono, decidiu anotar em seus cadernos, à luz de lampião, um romance sobre a seca, comovida pelo flagelo que presenciou. A edição de mil exemplares foi custeada pelos pais, que “emprestaram” à filha os dois contos de réis necessários.

No Ceará a crítica não deu muita atenção ao romance, mas com os elogios de Mário de Andrade e de Augusto Frederico Schmidt, Rachel de Queiroz se transformou numa celebridade literária. O sucesso de venda da primeira tiragem garantiu o pagamento do empréstimo aos pais. “O Quinze” ajudou a firmar a tradição dos romances vistos, na época, como criadores do “ciclo nordestino” na literatura brasileira.

Ao receber o prêmio da Fundação Graça Aranha em 1931, um ano após o lançamento do livro de estréia, ela faz contato com integrantes do Partido Comunista (PC) e ao voltar a Fortaleza, colaborou ativamente na fundação do PC cearense, chegando a ser fichada como “agitadora comunista” pela polícia política de Pernambuco. O namoro com o partido, porém, durou pouco. Em 1932, ao ser informada de que o romance “João Miguel”, no prelo, não seria aprovado, a escritora rompe com o partido. O livro é publicado, Rachel se muda para São Paulo e liga-se ao grupo trotskista.

Em 1937, no início da ditadura Getulista (conhecida também como Estado Novo), Rachel lança o romance “Caminho de pedras”. Seus livros são queimados em Salvador, junto aos de Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos, por serem considerados subversivos. Ficou presa durante três meses numa sala de cinema do Corpo de Bombeiros de Fortaleza, por sua militância política.

Definindo-se jornalista, Rachel publicou mais de duas mil crônicas em diversos jornais brasileiros, cuja seleção proporcionou a edição dos seguintes livros: “A donzela e a moura torta”; “Cem crônicas escolhidas”; “O brasileiro perplexo” e “O caçador de tatu”. Escreveu, também, duas peças de teatro, “Lampião” (1953) e “A beata Maria do Egito” (1958), laureada com o prêmio de teatro do Instituto Nacional do Livro. No campo da literatura infantil, escreveu o livro “O menino mágico”, a pedido de Lúcia Benedetti. O livro, no entanto, surgiu das histórias que inventava para os netos.

Leitora ávida, não só de obras em língua portuguesa, traduziu mais de 40 obras de vários escritores. Entre seus autores preferidos aparecia com destaque Dostoiévski, de quem traduziu várias narrativas, incluindo três volumes de “Os irmãos Karamazov”. Também vieram dos russos as várias leituras socialistas que seduziram a jovem e levaram-na a abraçar o trotskismo. Mas a escritora não pensava só em política e gostava de ler Balzac, Jane Austen, Emily Brönte, Jack London, Júlio Verne e outros. Todos esses autores tiveram alguma de suas obras traduzida por Rachel.

Em 1992 publica o romance “Memorial de Maria Moura” e dois anos mais tarde ocorre a adaptação dele para a televisão, o que a tornou ainda mais popular, e provocou o leilão de editoras pelo direito de publicação de suas obras completas rendeu-lhe cento e cinqüenta mil dólares. Nada mau para uma autora que confessou não gostar de escrever e que se dizia mais jornalista do que escritora.

Sempre humilde, Rachel de Queiroz assim definia-se: “Eu não faço grande uso de mim mesma, e, portanto, da minha chamada ‘obra’. Eu fiz uns livrinhos, estão aí, tomara que as pessoas continuem gostando”. Essa serenidade parece tê-la acompanhado ao longo de seus 92 anos de vida. Sofrendo de diabetes, morreu enquanto dormia em sua casa no bairro do Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro, 13 dias antes de completar 93 anos, vítima de um infarto do miocárdio. A escritora cearense, foi a primeira mulher eleita para a Academia Brasileira de Letras, tornou-se “imortal” ao lado do reduto até então exclusivamente masculino, abrindo caminho para outras autoras.



Dica de consulta sobre a autora:

Site da Academia Brasileira de Letras -

http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=115